O embrião do Zicartola ficava na rua dos Andradas 81, sede da Associação de Escolas de Samba, nas imediações do Largo de São Francisco, Rio de Janeiro. Lá, de favor, viviam Cartola e Zica. Ele lavando a média de dez carros por noite, ela com o umbigo no fogão, fazendo marmitas para os motoristas que estacionavam na praça Mauá. Numa espécie de carrocinha, Zica e o menino Ronaldo, filho adotivo (e depois perfilhado), levavam a encomenda para a freguesia, os motoristas de ônibus que estacionavam, então, na praça Mauá.
O mito Cartola existia no meu imaginário como figura já falecida: “Antigamente havia grande escola/lindos sambas do Cartola” – cantava eu, menino, nos blocos carnavalescos. Deve-se seu redescobrimento a duas figuras: o caricaturista Lan e Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Fui conhecê-lo em 1962, eu com 27, ele com o dobro de minha idade, 54 anos. Sei lá porque, sempre imaginei que o conheci em 1956. O objetivo da visita era uma entrevista para a revista “Leitura”, a mim encomendada pelo poeta Homero Homem.
(Com o tempo, conhecendo a vida de Cartola, comparei-o à lenda do pássaro Fênix, aquele que conseguia renascer da próprias cinzas. Foi assim a carreira de Cartola, uma sucessão de sucessos seguida de grandes fracassos. E a cada derrota, renascia esplendoroso, espargindo luzes. A história do Zicartola se insere nesse contexto.)
Voltando ao sobradão da rua dos Andradas: um bando de amigos se reunia aos sábados para curtir os sambas de Cartola e saborear os temperos de Zica. Eugenio Agostini e seus primos Renato e Fábio eram todos fissurados na obra do Angenor de Oliveira.
Constrangia a todos a situação de pobreza do casal. Fazia-se uma espécie de “vaquinha” para Zica comprar os condimentos e, claro, separar uma graninha pelos seus serviços culinários, por sinal de altíssimo nivel. Imagino que cada um levasse sua bebida – como, aliás, não se fazia nas rodas de choro de Jacob lá em Jacarepaguá, pois ele abominava a presença de álcool em suas reuniões. Um único que driblava o regulamento era Lúcio Rangel, que por sinal sempre corrigia Mário de Andrade na antiga Taberna da Glória, quando ele se referia a Ismael Silva: “Ismael Silva não: o GRANDE Ismael Silva” – que entrará nessa história mais adiante.
A ideia luminosa de profissionalizar aqueles encontros, alugando um espaço para Cartola e Zica se estabelecerem comercialmente, foi de Eugenio e seus primos, todos eles bem estabelecidos na praça. Queriam que Zica e Cartola, no mínimo, enricassem. E saíram em busca de um lugar: subiram as escadas de uma casa na rua da Carioca 53 e logo a idealizaram como o lugar perfeito. E foi aí que se perguntaram – como se chamaria? Cartola e Zica, Zica e Cartola. Zicartola! O acrônimo soara perfeito: sonante, musical. Agora, mãos à obra: construir cozinha, despensa, comprar o mobiliário e – pronta a obra – contratar ajudantes para a cozinheira-mor exercer suas prendas e seu ofício. E garçons, muitos garçons. Segundo o sonho dos patrocinadores, logo o casal estaria nadando em ouro.
Vamos logo colocar Zé Kéti, amigo de Cartola, nessa história. Em sua cabeça privilegiada de empreendedor, quando a palavra empreendedorismo não estava na moda, piscou uma luzinha: existia ali, potencialmente, uma casa de samba implorando para ser criada. Todos foram contagiados pela ideia do Zé, e eu logo pensei numa “Ordem da Cartola Dourada”, um diploma que seria entregue às grandes figuras da nossa música. E fui ao ateliê do Heitor dos Prazeres para que criasse o logotipo da casa: um casal dançando e, encimando o desenho, Walter Wendhausen desenhou o nome do estabelecimento. A primeira homenageada foi Lindaura, viúva de Noel Rosa. Depois, Aracy de Almeida, Linda Batista, Elizeth Cardoso, Cyro Monteiro – não me lembro dos demais agraciados.
As filas serpenteavam na casa de número 53 da rua da Carioca. Zé convocou Elton Medeiros e Padeirinho. E logo Nelson Cavaquinho seria uma das atrações da casa. Eu conhecera há pouco, no balcão do Banco Nacional, um jovem atencioso que timidamente se declarou frequentador das rodas de choro de Jacob do Bandolim, em Jacarepaguá, onde seu pai, Benedito Cesar, integrava o conjunto daquele músico genial. Ficamos amigos e parceiros, e o apresentei ao Cartola, que logo o incorporou ao grupo de samba da casa. Paulo César Baptista de Faria passaria a ser Paulinho da Viola, que recebeu das mãos de Cartola o primeiro cachê de sua vida. Ismael Silva, por que não? Esse levei para também integrar o elenco fixo da casa, do qual fazia parte o Geraldo das Neves.
Vaidoso, criador de casos, Ismael fazia questão de encerrar as noites, honra que deveria pertencer ao titular da casa – que não estava nem ali para essa deferência. Logo criaria problemas, chegou a dar parte na polícia por cachês que não estariam sendo pagos a ele. Amarguei por algum tempo o convite feito ao grande sambista, mas nunca externei esse arrependimento ao meu querido Lúcio Rangel, que aliás se referia a Cartola como “O Divino”. “O mundo é um moinho”, já proclamou o poeta mangueirense, e águas passadas não o movem, diz o velho ditado. Deixemos, pois, esse episódio desagradável no esquecimento.
Pois bem: na inauguração da casa, reencontro quem? Clementina de Jesus, cuja visão cantando e dançando na Taberna da Glória em maio de 1962 é data que não me sai da memória. O Zicartola tinha essa magia. Lembro que fiz uns versos cuja letra passei pelo mimeógrafo, e o distribuía nas mesas. Zé Kéti logo os musicou – e se daria ali a minha estreia profissional como compositor. Panfletário, o grande Vianinha subia nas mesas e fazia discursos de cunho político. O Zicartola ganhava uma nova dimensão: era também um centro de discussões onde as esquerdas se encontravam. Ali, naquele sobrado, brotariam as ideias que se corporizariam nos musicais “Opinião” (1964) e “Rosa de Ouro” (1965).
Meu relacionamento com Cartola e Zica se estreitava. Temeroso com o sucesso do Zicartola e com as rendas que poderia proporcionar, me confidenciou sua vontade de proteger Zica, com quem vivia maritalmente. “E se eu casasse oficialmente com ela?”, perguntou. Em 23 de outubro de 1964 eu entrava de braços dados com a noiva na Igreja Sagrado Coração de Jesus. O casal Jota Efegê e Feslibela, mais o Mario Saladino e Maria Muniz, foram os padrinhos.
Ao contrário do que imaginavam os amigos de Cartola que idealizaram o restaurante, o sucesso seria efêmero: criado em 5 de setembro de 1963 (data de formação da sociedade, mas a casa de samba começou a funcionar a todo vapor em fevereiro de 1964), um ano e pouco depois boa parte do público migrou para a Estudantina, para o Elite e uma outra parte debandou de vez. Passara a novidade. A administração do restaurante era caótica, os amigos do casal não contaram com a total inexperiência de Cartola e Zica no ramo. Depois de algum tempo, a casa foi repassada para o Jackson do Pandeiro, que não conseguiu levá-la adiante. E depois foi definhando até fechar as portas em 1965.
Importante contextualizar: a casa foi inaugurada em 1963. Em dezembro de 1964 estreia o “Opinião” com Nara, Zé Kéti e João do Vale. Com uma semana de diferença, Clementina sobre ao palco do Teatro Jovem ao lado de Turíbio Santos, na série Menestrel – e acompanhada por Paulinho da Viola, Elton Medeiros (ambos na percussão) e Benedito Cesar no violão. Em março de 1965 explode o “Rosa de Ouro”, com Quelé, Araci Cortes, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro e Nelson Sargento. Sementes plantadas no Zicartola, florescidas naquela casa de samba, artística e genialmente administrada por Zé Kéti. Albino Pinheiro, Sergio Cabral e eu éramos os apresentadores daquelas rodadas memoráveis. Numa velha Remington eu mesmo datilografava os cardápios. Não, não ganhávamos um tostão com a colaboração que prestávamos.
Tentei – e como! – fazer um LP com as músicas de Cartola interpretadas por Aracy de Almeida, projeto que me foi encomendado por Sérgio Porto. Consegui, no máximo, em 1968, fazer o LP “Fala Mangueira”, reunindo Cartola, Carlos Cachaça, Clementina de Jesus e Odete Amaral. Pelão teria mais êxito e conseguiu depois produzir o primeiro LP individual de Cartola – um sucesso total!
Enfim, voltando ao Zicartola: mais do que um restaurante, era um centro de cultura e de agitação política, numa época difícil em que os militares já tinham se instalado no poder.
E, a sorrir, o Divino Cartola não só pretendeu como conseguiu levar sua vida, como no belo samba que compôs com o grande Elton Medeiros. Feito Fênix. A cada fracasso conseguia renascer e alçar vôo.
Hermínio Bello de Carvalho é poeta, compositor e produtor musical.