Como parte da programação da mostra Em 1964, o cinema do IMS-RJ exibiu, em agosto de 2014, o filme Fábula, minha casa em Copacabana, de Arne Sucksdorff. A mostra Em 1964 durou todo o ano, com seleção do coordenador de cinema do IMS, José Carlos Avellar.
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Em agosto de 1964, os jornais noticiavam a proibição das filmagens de Fábula, minha casa em Copacabana, de Arne Sucksdorff, e a apreensão de todos os equipamentos e materiais do filme depois de uma denúncia apresentada por um diretor da Air France, Mário Brafman. Ele achou as cenas que estavam sendo filmadas “um atentado contra os interesses nacionais”. A proibição, de acordo com o delegado do 12º Distrito Policial, foi uma ação “apenas acauteladora, para impedir que no exterior tivessem uma ideia negativa do Brasil”. No Jornal do Brasil, um protesto do crítico de cinema Claudio Mello e Souza:
“As denúncias estão valendo como irrefutáveis condenações, há uma suspeita parando sobre a paisagem, o ressentimento e a hipocrisia vicejam, e a inteligência e até mesmo o bom senso correm o risco de terem cassados os seu mandatos espirituais. Parece exagero, leitor, mas não é, não. Veja o que ocorreu esta semana com o cinema. O diretor sueco Arne Sucksdorff, um nome respeitável e sério, que se enamorou do Brasil e que aqui pretendeu trabalhar, estava filmando, tranquilamente, na praia de Copacabana, quando, movida por uma denúncia estúpida, a polícia apreendeu todo o seu material de filmagem”.
Uma cópia do filme foi restaurada sob supervisão de Hernani Heffner, coordenador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que no texto a seguir lembra que o episódio foi incluído no filme, pois o método de trabalho de Sucksdorff na ficção incorporava práticas do cinema documentário.
Fábula, minha casa em Copacabana, filme escrito, fotografado, montado e dirigido pelo cineasta sueco Arne Sucksdorff (1917-2001) tem duas versões. As matrizes e cópias estrangeiras de Mitt hem är Copacabana estão em boa condição, sob a guarda do Svensk FilmInstitutet, mas da versão brasileira restou apenas um internegativo combinado 35 mm. O interpositivo e todas as cópias do lançamento brasileiro foram perdidas e o estado físico do único material conservado da versão brasileira, inspirava cuidados quando depositado na Cinemateca do MAM pela Líder Laboratórios Cinematográficos.
Mais conhecido entre nós pelo curso de cinema que realizou no Rio de Janeiro em 1962 sob os auspícios do Itamaraty e da Unesco, Sucksdorff era um documentarista respeitado em todo o mundo quando veio ao Brasil.
Recebera dois importantes prêmios internacionais, o Oscar de melhor curta-metragem em 1948 com Ritmos da cidade (Människor i Stad) e o prêmio de melhor curta-metragem no Festival de Veneza em 1951 (com Indisk by). E seu primeiro longa-metragem, A grande aventura (Det Stora Äventyret), fora premiado nos festivais de Berlim e de Cannes em 1954. No começo da década de 1960 Sucksdorff se sentia atraído pela possibilidade de experimentar, com as novas técnicas e equipamentos, levar para a ficção a espontaneidade conseguida com os personagens e as cenas de um filme documentário. Foram justamente essas pesquisas, com o gravador Nagra, o som direto e a interpretação de não-atores (como em O menino da árvore / Pojken i Trädet, 1961) – que o credenciaram para o curso brasileiro. No Rio, Sucksdorff ministrou parte das aulas em Copacabana, atraído em especial pela situação das crianças abandonadas que transitavam entre o morro e a praia, personagens centrais de um argumento cinematográfico enviado para a AB Svenska Filmindustri, que concordou em investir cerca de US$ 140 mil no projeto.
Com a colaboração de Flávio Migliaccio, um ex-aluno do curso que atuou como co-roteirista e assistente de direção, Sucksdorff começou a procurar seus intérpretes. Entrevistou cerca de cinco mil crianças pobres até chegar a Cosme dos Santos, Leila Santos Sousa, Antônio Carlos de Lima e Josafá da Silva Santos, que emprestam ao filme uma atuação de grande impacto pela espontaneidade dos gestos em meio ao rigor da composição do quadro. A procura dos intérpretes tornou-se um laboratório para a elaboração do roteiro – para o desenho dos personagens, da história e do modo de falar. Cosme vivia no morro do Borel e era o único com alguma experiência cinematográfica – participara de Assalto ao trem pagador e de Cinco vezes favela. Josafá foi descoberto numa viagem pela Rio-Bahia. Leila, numa escola pública primária de Nova Iguaçu. Antônio, numa instituição para menores abandonados em Caxambu.
Levados ao bairro do Leme no Rio, eles passaram a viver com o diretor de produção, João Elias Ribeiro. A responsável pelos quatro intérpretes foi a futura atriz Leila Diniz. No elenco de Fábula, ao lado dos quatros protagonistas, participações de Flávio Migliaccio, Dirce Migliaccio, Antônio Pitanga, Antônio Carlos Fontoura e Eduardo Escorel.
As filmagens começaram em meados de 1963 e duraram cerca de um ano, com pelo menos uma atribulação: a prisão da equipe e a apreensão de todos os copiões do filme na praia de Copacabana, em frente ao Copacabana Palace, acusados pela polícia de estarem produzindo uma imagem negativa do país, registrando a miséria em vez das belezas naturais da cidade. Após alguns dias de tensão, o material foi liberado e a produção teve permissão para continuar a filmar. Reflexo do método de trabalho de Sucksdorff, que na ficção incorporava práticas do cinema documentário, o episódio foi incluído no filme. A utilização de episódios não encenados, por sinal, levou parte da imprensa brasileira a caracterizar o filme, na época de seu lançamento, como documentário.
Esta sensação se deve, em grande parte, à estrutura sonora do filme e isto é mais perceptível na versão brasileira do que na sueca. O uso do gravador portátil para a filmagem em som direto liberou a câmera para movimentos mais livres, e Sucksdorff se serve da câmera e do gravador como instrumentos de documentação imediata do mundo, mesmo quando essa documentação se realiza em detrimento da qualidade de registro dos diálogos. A tendência do documentário moderno era essa, e o que os brasileiros estavam buscando trilhava esse mesmo caminho. Fábula, porém, foi pensado para um público europeu, e a versão sueca incorporou, além de legendas, uma narração sobreposta, que explicava o que se passava na cabeça dos personagens. Parte dessa narração sobreviveu na versão brasileira na voz de Nelson Xavier. Permaneceram também algumas legendas, consideradas então necessárias pelo receio de não entendimento da dicção popular.
O impacto da fala das crianças, no entanto, e o quanto ela traduz a qualidade de suas interpretações, só permaneceu na versão brasileira.
Apesar de filmado no Brasil, Fábula foi revelado, copiado, montado e finalizado na Suécia. Estreou em março de 1965 em Estocolmo, com a presença do elenco infantil, que viajou para a Suécia e, em seguida, com o diretor, para o Festival de Cannes. O filme passou por outros festivais, ganhou a fama de filme humanitário e foi algumas vezes premiado por isso: Prêmio Francisco de Assis, do Vaticano; Prêmio Humanidade, do Festival de Moscou, além do Prêmio do Ofício Católico Internacional de Cinema e a Menção Especial do Júri no Festival de Bruxelas. Na Suécia recebeu o prêmio de melhor diretor de 1965. Os jovens atores que viajaram com o diretor para Estocolmo foram sondados para adoção, e Antônio e seu irmão foram efetivamente adotados pelo industrial sueco Fagerlind.
Esta circunstância aparentemente secundária acabou por propiciar o tardio lançamento brasileiro, três anos depois da estreia na Europa.
Após comentários sobre o destino do elenco infantil, e rumores que um dos intérpretes se tornara um criminoso, Sucksdorff, que então filmava no Pantanal, decidiu promover a exibição do filme no Brasil e destinar a renda para os quatro protagonistas. Com verba do Instituto Nacional de Cinema – processo 01468/68 – foi possível confeccionar um internegativo combinado a partir de material enviado da Suécia, um interpositivo e uma cópia.
A confecção dos materiais brasileiros ficaram a cargo do laboratorista Oswaldo Kemeny, que trabalhou no Laboratório Rex, em São Paulo, com acompanhamento de Sucksdorff. Decidiram produzir uma cópia de contraste mais acentuado, diferente do estilo fotográfico dos filmes anteriores de Sucksdorff, que contavam com imagem mais suave, preocupada com os brilhos e reflexos controlados para obter uma escala de cinzas mais clara, neutra e opaca – bem de acordo com a prática europeia da década de 1960.
Um contraste mais forte marcou a cópia usada no lançamento em São Paulo, em 23 de setembro de 1968, no Cine Marabá, com renda líquida para o produtor de 11.055,59 cruzeiros novos. Pelo acordo com o INC restava ainda uma dívida de cerca de 6.800 cruzeiros novos. Muito provavelmente foi a necessidade de saldar o empréstimo que levou Sucksdorff a negociar o filme com a Distribuidora Bennio Produções Cinematográficas, que se encarregou do lançamento no Rio, num circuito de oito salas, capitaneadas pelo Capitólio e pelo Pax, a 16 de dezembro de 1968, com cópias confeccionadas no Laboratório Líder, menos contrastadas, mais luminosas, mais próximas das imagens dos filmes do Cinema Novo. Fábula teve, assim, duas versões brasileiras, uma com a marcação de luz determinada pelo autor e a outra, que teve maior difusão pelo país, com imagem de contraste menos denso.
Nenhuma cópia sobreviveu. É impossível ter uma referência precisa quanto ao tom original e às recomendações do diretor para esta ou aquela cena em particular.
Na primeira etapa de restauração, realizada em 1993, a Cinemateca do MAM optou pela busca de uma cópia próxima da imagem da versão carioca. Nesta nova cópia feita para o Instituto Moreira Salles, procurou-se um resultado mais próximo do proposto por Sucksdorff na cópia exibida em São Paulo. Esses aspectos indicam o quanto foi fundamental levantar a trajetória do filme e de sua exibição para demarcar com exatidão a natureza da obra em sua “versão brasileira”.