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Ser contra ou a favor – por Rachel de Queiroz

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

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Ser contra ou a favor
Rachel de Queiroz

A gente recebe cartas curiosas. Uma delas, por exemplo, pode servir de resumo a todas: “Ninguém entende vo­cês jornalistas. Desde que se instalou o governo revolucionário, só fazem recla­mações, exigências e queixas. Vivem apontando falhas e faltas. Afinal, vocês são contra ou a favor deste governo? Que é que queriam? Milagres? Roma não se fez num dia!”.

Bem, confesso que se o uso do cachim­bo faz a boca torta, trinta anos de opo­sição habituam a resmungar, perde-se o costume de aplaudir governo e nos é quase impossível essa atitude tão doce aos governistas por vocação: o apoio in­condicional. A estes, o que é difícil é ser contra e falar mal de autoridade: a nós, mesmo quando aprovamos, o duro é tecer louvores.

Mas descontando-se este sestro ra[bu]gento, para o qual é difícil a cura, temos o prazer de declarar com a maior ênfase possível que somos, sim, partidários deste governo — e quanto! Que na medida das nossas fracas forças apoiamos, tor­cemos, queremos todos o bem aos homens que ora tratam de regenerar a República. E como não apoiar, aplaudir, confiar e ajudar tanto quanto possível um Milton Campos, um Luiz Viana, um Juarez [Távora], um Golbery [do Couto e Silva] e praticamente todos os demais homens da equipe presidencial, grupo ex­celente de brasileiros que só têm um pro­pósito nesta hora difícil e perigosa: acer­tar? Como não apoiar o marechal Cas­tello Branco, homem de tão alta catego­ria, como dificilmente é dado ver igual em posto de governo? Dele só podíamos repetir o que dizíamos aqui em casa quando da indicação do seu nome para a eleição indireta no Congresso: se saís­se de lanterna na mão à procura de um homem para a presidência, nem Dió­genes [1] acharia outro melhor…

No mais, quanto a perguntarem se queríamos um milagre, respondemos que isso mesmo, precisamos com urgência de um milagre, rápido, imediatamente um milagre, só um milagre nos serve para ajudar esses homens. Ou, aliás, outro milagre, porque o primeiro já houve, que foi a própria revolução de 31 de março.

Daquele atoleiro para onde derrapára­mos, sair para esta estrada enxuta, embora ainda espinhenta, ainda pedregosa, mas limpa de lama, de lixo, de bichos peçonhentos. E sairmos de repente, sem matar nem morrer, apenas dando um susto nos impostores valentões que nos ameaçavam com ferro e fogo. E pensar que já estávamos mesmo dispostas a tudo, a aceitar até a guerra civil, conquan­to nos livrássemos da quadrilha que nos saqueava e nos cobria de vergonha. Foi milagre e grande. Um devoto de Anchie­ta [2] nos dizia que agora já não se pode mais adiar a canonização do bem-aven­turado jesuíta sob a alegação de que não obrou suficientes milagres: nesta pro­vidência salvadora de março está mais que evidente a mão do Apóstolo do Bra­sil…

No Cariri se diz que foi Nossa Senhora das Dores, por intercessão do Padre Cí­cero. Em São Paulo se dirá que foi Nos­sa Senhora Aparecida. Na Bahia, o Se­nhor do Bonfim. No Pará, o Círio este ano deverá ser mais festivo que nunca, em gratidão à Virgem de Nazaré. Mas deste ou daquele o milagre, o que não deixa dúvida é que foi santo grande e com poderes fortes.

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Quanto às divergências — ora, pelo amor de Deus, para que querem outra prova da força da nossa restaurada de­mocracia? Agora não nos é imposta mais nenhuma suspeita unanimidade. Diver­gimos, discutimos, e por fim nos curva­mos à decisão da maioria, realizando na prática o verdadeiro diálogo democrá­tico. Já não nos deixamos aterrorizar pela grita dos pelegos, nem nos cons­trange a chantagem ideológica dos fal­sos mentores de opinião. Se discorda­mos, por exemplo, da concessão do di­reito de voto ao analfabeto (nossa tese é que o analfabetismo não se prestigia nem se afaga, acaba-se com ele), isso afinal são nugas dentro do plano geral. E se reduzirem esse voto analfabeto ao âmbito municipal, então não haverá mais divergência nenhuma, pois é evidente que, para se votar num homem que se conhece pessoalmente, ninguém precisa de saber ler e escrever.

Ah, justamente uma das coisas que mais nos fazem amar esta revolução é nos ter livrado do petulante “crê ou mor­re” dos salvadores de araque; então, ou se ia para a rua berrar os seus slogans de má-fé, ou se era gorila e traidor.

Haveria nada mais parecido com as multidões peronistas e nazistas do que as famosas “massas politizadas” dos co­mícios janguistas, a urrar em cadência, sob a batuta das talaricos? (Aliás, em apoio da nossa tese de que tudo aquilo era mesmo fascismo, está aí o caso do suplente de deputado Melo Mourão [3], réu condenado à morte como espião nazista ao fim da guerra, e hoje um dos favo­ritos mais mimados do governo João Goulart).

Sim, acabou-se a chantagem ideoló­gica, embora alguns ingênuos ainda nos ameacem com ela — os que se escanda­lizam porque não bradamos aos céus con­tra a “tirania” desta revolução e não engrossamos o coro dos que choram as “liberdades” perdidas. Agora é que eles se lembram de liberdades. Mas o próprio fato de que estão a gritar é a prova de que não há tirania. Naquele “retorno” do general Lott em [19]55, que os que hoje reclamam acharam tão distinto, houve estado de sítio, censura de imprensa, e se prendeu até o presidente enfermo — mas nenhum daqueles “patriotas” achou ruim. Ah, não há como um dia depois do outro!

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E não se iludam os auscultadores de opinião. Não se guiem pelas supostas maiorias das cidades grandes, cevadas na propaganda de comunas e pelegos: não há brasileiro, neste momento, que tenha maior prestígio que o presidente Castello Branco. O povo mesmo, o povo propriamente dito, a maioria esmaga­dora, o grosso do Brasil está com ele. Cheio de esperanças, pleno dessa certe­za antiga e quase esquecida: confiança. Não que ninguém faça do presidente um messias, um carismático, tão do gosto das ludibriadas turbas vargo-janguistas. É apenas um homem de bem, cheio de co­ragem, de inteligência e boa vontade, procurando dar no governo o melhor de si mesmo. E nós, que o conhecemos, sa­bemos — graças a Deus — quanto espe­rar desse melhor.

 

Notas do site:

[1] Diógenes de Sínope (413-323 a.C) – Filósofo grego da escola cínica. Segundo relatos, andava durante o dia, em meio às pessoas, com uma lanterna acesa pronunciando a frase “Procuro um homem”.

[2] O padre José de Anchieta (1534-1597) foi canonizado pelo papa Francisco no dia 03 de abril de 2014.

[3] Gerardo Mello Mourão (1917-2007) – Escritor, poeta, filósofo e deputado federal. Mello Mourão era o braço direito de Plínio Salgado no movimento integralista e foi acusado de ser espião de Hitler no Brasil durante a implantação do regime nazi-fascista na Europa.


Publicado na revista O Cruzeiro, em 15 de agosto de 1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , ,