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Robinson Crusoe – por Paulo Mendes Campos

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Robinson Crusoe
Paulo Mendes Campos

Um homem de trinta e sete anos passa o fim de semana com a família em Petrópolis e sente um calafrio no tronco. Pensa que está com gripe, desce para o Rio no dia seguinte, sofre uma forte dor de cabeça, mas vai trabalhar na gerência de um jornal. Agrava-se o seu mal-estar, chama um clínico, este pede a colaboração de um neurologista. Internado em uma casa de saúde, sabe, depois de sofrimentos e alucinações, que estava com paralisia infantil. Ele, de natureza robusta e que tinha o alpinismo por esporte, já não tinha força muscular para o exercício da respiração, necessitando de um pulmão de aço. Há dois prognósticos a seu respeito: a morte ou a para­lisia total.

São anos inimagináveis dos mais pungentes sofrimentos físicos e morais. Na primeira vez que tenta ficar de pé, nas suas próprias palavras, des­morona como um castelo de cartas, quase fratu­rando as pernas e a bacia, tomando-se de pânico. Seu corpo era uma coisa em parte dolorosa, em parte amortecida. O carinho dos parentes, a dedicação de médicos e enfermeiras, eram-lhe essenciais, mas não consegue reprimir o rancor por todos aqueles que lhe salvavam a vida: pre­feria morrer. Deixando o hospital, consegue em casa uma primeira e sofrida vitória: sentar-se na cama. Lembrando-se de seus tempos de alpinis­ta, compreende que lhe restava escolher entre a covardia ou a coragem de iniciar uma escalada que poderia durar a vida toda. A cadeira de rodas permite-lhe reagir contra a monotonia das paredes do quarto. Um dia resolve executar uma proeza suprema, sabendo que a mesma envolvia uma experiência decisiva à recuperação: ficar em pé junto à cama. Suas palavras: “Naquele mo­mento eu aprendi que toda criatura humana realiza um prodígio de equilíbrio quando anda ou, simplesmente, fica de pé. Meio centímetro de deslocamento pode determinar uma queda, quando não corrigido a tempo. Esta correção é automá­tica nas pessoas normais; mas, para mim, era dolorosamente difícil”.

Embora apavorado, aceita o convite que lhe fazem para uma volta de carro, sofre tonteiras, confusões mentais, acaba chorando como uma criança no Parque da Cidade. Dois meses depois de adoecer, consegue arrastar a perna uns cinco centímetros para a frente: era o primeiro passo. A essa altura, frequenta os exercícios terapêuti­cos da ABBR, faz progressos, mas é visitado por terrível abatimento, surgindo-lhe a ideia do sui­cídio — e isso mesmo lhe era quase impossível, a não ser que se precipitasse de cabeça contra o cimento, de resultado duvidoso. O convívio com outros doentes pouco a pouco abre-lhe a sensi­bilidade à conquista de uma nova força: o enten­dimento da solidariedade. Conseguindo escrever em máquina elétrica, experimenta a extraordiná­ria emoção de trabalhar, redigindo uma coluna semanal para um matutino. Esse retorno a uma relativa atividade é também entremeado de es­peranças, e decepções, passando de um trabalho para outro, às vezes enganado, às vezes ajudado pelo próximo. Uma manhã, depois da missa, de­cide ir a pé, cruzando a praça entre a igreja e sua casa. Depois de várias tentativas, consegue mais um triunfo: tirar a roupa sozinho e vestir um pijama: uma hora e trinta e três minutos. Estuda as funções musculares, aprende a escrever com a mão esquerda, faz exercícios mentais para bloquear qualquer sentimento de pena de si mesmo, e consegue por fim atravessar sem apoio uma pequena sala.

Uma experiência definitiva: depois de uma série de esquemas táticos e esforços físicos, sobe uma escada, façanha mais espetacular e comoven­te que escalar o pico das Agulhas Negras ou ficar dependurado de uma corda na Pedra da Gávea. Mais algum tempo, e logra erguer-se sozinho da cadeira de rodas. Com o auxílio de molas enganchadas nos sapatos e nos pedais, volta a dirigir automóvel. Hoje esse homem movimenta-se com bastante desembaraço e dirige uma tipografia, re­equilibrado física e mentalmente. Um homem de ferro.

Convido a todas as pessoas, sadias e doentes, pessimistas ou otimistas, a ler o livro Eu Fui Paralítico, de Gustavo Joppert. Os sadios sairão dessa aventura mais sadios, mais reconhecidos ao milagre do perfeito funcionamento dos músculos, dos nervos, dos sentidos, dos neurônios; os doen­tes, sobretudo os que sofrem do mesmo mal, farão um curso de coragem e, tão ou mais importante, aprenderão expedientes práticos que muito podem ajudá-los nessa dura tentativa de evasão da ilha deserta. Pois a paralisia é uma ilha áspera, cruel e solitária: um Robinson Crusoe, como Gustavo Joppert, aprende antes de tudo a sobreviver no ermo horrível, a despeito do terror, do desespero, do extremo desconforto; depois, descobre sexta-feira, isto é, a existência do próximo; a última aventura é a construção de um barco que o traz de novo à terra onde vivem os outros homens.

Neste fim de crônica aperto a mão de Gusta­vo Joppert, que não tenho a honra de conhecer, e não lhe digo mais nada.


Publicado na revista Manchete, em 3 de outubro de 1964.

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , ,