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Rio, de novo
Rachel de Queiroz
Passados seis meses de ausência, a cidade do Rio nos recebe com rajadas de chuva e vento gelado. Parece tão descortês com quem a ama, mas também se diz que pancada de amor não dói. E doendo. Porque, ao se sair do casulo aquecido do avião, com que gripe a tal chuva nos agride! Gripe igual jamais sofrida, nesta longa carreira de vida e de gripes. Já nem é mais a asiática, será antes a lunática, proveniente dos miasmas lunares suscitados pelo impacto do foguete Ranger.
E assim mesmo, entre febre e mau tempo e algumas curtas clareadas de sol, vamos aos poucos tomando posse da metrópole, espiando as coisas novas. Primeira observação e decerto a mais significativa: como a cidade parece tranquila! Será a ausência da fermentação janguista, o afastamento daqueles cavalos gaúchos, simbolicamente atados a todos os monumentos da cidade, a relinchar e a escoucear? Ou será obra exclusiva do Coronel Fontenele com suas manobras de circulação e suas manipulações pneumáticas? O fato é que já se pode andar pelo centro depois do meio-dia, já se pode ir a Ipanema nas horas do rush. Comparada com a calma nova do Rio, Fortaleza, por exemplo, até parece mais agitada.
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A vida vai horrível de cara, vai. Nas lojas, então. Sapatos, roupas, móveis, utensílios, tudo — a gente nem acredita. E quando por acaso alguém vê numa vitrina um preço convidativo, um preço como no tempo de dantes, e se alvoroça para comprar, acaba descobrindo em letrinhas manhosas, bem pequeninas por debaixo do preço, a advertência: mensais. O tal preço convidativo é na realidade de uma prestação!
Mas nos gêneros alimentícios, nos secos e molhados, nos abastecimentos de despensa e geladeira, acho a vida aqui comparativamente mais barata do que no interior. Por mais que se fale mal da SUNAB e congêneres, a verdade é que o consumidor da cidade grande tem proteção, tem tabelamento, enquanto lá pelo Brasil adentro o jogo é livre, o roubo, é solto, manda a ignorância. O comerciante do interior cobra o que quer, o seu único limite de preço é o desaparecimento da procura por colapso econômico do consumidor. Lucros de duzentos por cento são comuns. A única forra que o mísero comprador ainda tira é dar o beiço no fiado.
E além dos preços inconcebíveis, os artigos são de qualidade infame. Como o imundo açúcar que se consome pelo sertão, que não é nem o cristal nem o mascavo, embora participando da natureza de ambos: porque é grosso como o cristal, mas é úmido, aos bolões. E preto como o mascavo, sendo, porém, que a pretura não é da cor natural, é de sujeira. E com tudo isso custa mais caro que o açúcar refinado e pulverizado daqui. E às vezes se vende em garrafa, de tão melado! Sal, arroz, farinha, tudo no mesmo gosto. E o pão e as coisas enlatadas, então!
Como fazer chegar às desprotegidas povoações do interior os controles de preço do governo? Só se a SUNAB possuísse um exército, o que é impraticável. O remédio mesmo é esperar pelo socorro daquela lei que não carece de beleguins para a sua observância: a lei da oferta e da procura.
Deixa o governo ganhar a batalha da produção, deixa haver gêneros em quantidade suficiente para abastecer o mercado interno e transporte para os levar dos centros de origem aos de consumo, e aí quero ver humilhada a arrogância de muito bodegueiro!
Vamos ter esperanças. Lembremo-nos como é que a gente estava e como é que já está. A massa falida que era o país, se organizando para balanço, apurando as perdas, raspando os poucos lucros no fundo do tacho. Já se vão sanando os males principais. E com trabalho, economia e fé em Deus, talvez a cura chegue mais depressa do que se pensa.
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Mas, voltando ao Rio, — a gente até esquece, meu Deus, como o Rio é lindo. A cor do céu e a linha das montanhas e a espuma do mar, e os prédios e as árvores das ruas. Neste mês de agosto a igrejinha do Outeiro faz a sua mágica anual de ficar suspensa no ar da noite, recortada em luzes, e a sua visão por cima do pisca-pisca da cidade é de uma beleza tão ingênua e pungente que dói no coração. Embaixo, as obras do Aterro da Glória já deixam ver bem o que será ele quanto estiver pronto em todo o seu esplendor, como o Rei Salomão.
E por falar no Aterro da Glória, foi-se o seu grande colaborador, Afonso Eduardo Reidy, em plena força da idade, quando tanto havia ainda a esperar do seu talento imenso. Ali mesmo se ergue um dos monumentos da sua criação, o Museu de Arte Moderna. E ao pé do MAM, naquela esbeltez pura de linha que até parece um voo de garça, a Ponte Paulo Bittencourt, a fina passarela branca, ligando o Monroe ao Aterro, num salto leve e sinuoso, por sobre a onda grossa do tráfego. Diz que Manuel Bandeira, morador lá defronte, nas manhãs em que acorda deprimido ou infeliz, chega à janela, fica a olhar um pouco a passarela do Reidy, e sente-se consolado, certo de que o mundo pode ser mau, sim, mas pelo menos é bonito.
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Publicado na revista O Cruzeiro, em 5 de setembro de 1964