Rachel de Queiroz, grande escritora, mulher de conversa divertida e inteligente, a quem tive o prazer de entrevistar em seu maravilhoso apartamento na Rua Rita Ludolf, no Leblon, colaborou intensamente com o golpe de 1964. E contava isto sem nenhum constrangimento, convencida de que fizera o bem. Na longa entrevista que fiz com Rachel, em dois ou três encontros, tem muita história boa, tem muita anedota engraçada, tem muita indiscrição maliciosa sobre escritores e escritoras com quem conviveu, tudo que fazia dela a interlocutora mais interessante possível. Mas tem também a confirmação dessa legenda negra que estará sempre associada ao nome da talvez maior escritora que o Brasil já teve.
Numa entrevista concedida ao programa Roda Viva, em 1993, mesmo ano em que tivemos nossas conversas, ela enfrentou uma parada dura, ao declarar explicitamente sua colaboração com o golpe e a profunda amizade que a ligava ao marechal Humberto de Alencar Castelo. É que o escritor Caio Fernando Abreu, em diversos momentos, não contém a indignação diante da naturalidade com que Rachel fala de sua participação no golpe. Com a mesmo simpatia e o permanente sorriso um pouco dentuço que emprestava ao seu rosto um ar de vovó boazinha, Rachel afirmou que não tinha arrependimento algum e que, pelo contrário, o que veio depois do governo Castelo Branco, a fase mais sombria da ditadura iniciada no governo do sucessor, general Costa e Silva que instituiu o AI-5, não seria nem mesmo culpa do seu amigo. Pode-se dizer em seu favor que o embate durante aquele programa de TV foi honesto e os dois contendores terçaram armas de forma franca e firme, expressando cada um suas divergências sem que a discussão enveredasse para as ofensas.
Na entrevista que me concedeu, Rachel revela que não só apoiou o golpe como também conspirou ativamente a seu favor. Na verdade, ela conspirava por um golpe de direita desde o segundo governo de GetúlioVargas. Golpe que, segundo me disse, teria sido frustrado pelo suicídio em 24 de agosto de 1954. A carta-testamento, segundo ela, não era a carta de um suicida, daquelas que se deixa na mesa do lado da cama: “Foi uma carta de palanque. A gente sentia o aproveitamento político do suicídio”. Rachel também revela que conspirou na tentativa de golpe para impedir a posse de Juscelino em 1955. Ela fala da grande amizade que tinha com Café Filho, de encontros no Catete, onde seu grupo de amigos teria tentado influenciar Café no sentido de que ele aderisse à tentativa de impedir a posse de Juscelino. Mas Café não teria embarcado na conspiração.
“Me lembro tanto, de vez em quando, o Café chamava a gente para almoçar no Catete, ou para tomar café com ele, ficava naquela sala ali, e ele dizia: ‘vocês nunca me levarão a um golpe’. Nunca nós conseguimos uma palavra do Café. (…) Então, o Lacerda fazendo uma campanha terrível contra a posse do Juscelino. Mas o Café, pelo contrário. Era contra o PSD mineiro. Contra os getulistas todos. Aquilo que a gente tinha derrubado com tanto sacrifício…”
O ódio a Getúlio Vargas e a seus herdeiros, Jango, Juscelino e Brizola aparece tanto na entrevista ao Roda Vida, quanto na que me deu. Brizola, o único que então ainda estava vivo, transformara-se numa espécie de nêmesis da escritora que se recusa mesmo a pronunciar seu nome. Rachel começou sua atuação na vida política como uma militante trotskista que chegara a participar de enfrentamentos com a polícia nas ruas de Fortaleza em 1934. Tendo sempre antipatizado com os comunistas, ela diz que, em 1935, o PCB teria acusado os trotskistas de traição, atribuindo a eles o vazamento de informações sobre o planejado e frustrado golpe comunista de 1935. Parece que aquele ano de 1935 marca o afastamento da escritora tanto de uns como de outros.
A separação do primeiro marido e a união com o médico Oyama Macedo, a partir de 1941, indicam que a passagem para uma posição mais à direita se deu naqueles cinco anos e teve como componente principal o verdadeiro ódio que Rachel tinha contra Getulio Vargas. Ódio que, pelo que sugere sua narrativa, era partilhado pelo marido. Como esse é também o momento da virada de Carlos Lacerda da esquerda para a direita, é possível presumir que Rachel, Oyama e os amigos mais próximos sofreram influência direta de Lacerda. Ela disse que nunca foi da UDN mas a grande admiração que tinha por Lacerda e depois por Janio Quadros certamente devem ter contribuído para que ela se tivesse mantido sempre politicamente próxima da UDN.
A descrição que faz da cena política em 1955 revela uma mistura, talvez voluntária como a que alguns fazem hoje, entre esquerda e direita. Rachel diz que os militares reacionários eram os que deram suporte a Juscelino, dos quais o mais destacado era o marechal Lott. Para Rachel, o PSD era o partido da República Velha, das oligarquias mineiras, de tudo que havia de mais atrasado. O PTB seria um partido criado por Vargas sob inspiração do fascismo italiano e, finalmente, a UDN seria o partido moderno que se opunha a tudo aquilo que estivera ali antes.
“Engraçado, como as coisas viram, os reacionários eram os do… Café que tinha sido comunista. (…) A UDN é que era anti-Getúlio, o anti-fascismo e tudo mais. E o PSD era a reação, a República Velha, os carcomidos, o apoio ao Hitler que o Getúlio deu toda a vida, ao salazarismo. (…) Os trabalhistas eram os pelegos. Era o que havia de mais reacionário. O PTB foi copiado do partido fascista italiano. A legislação trabalhista do Getúlio foi copiada da legislação corporativista fascista. Aquele negócio de deputado classista, de juiz classista, tudo aquilo era corporativismo.”
O fascismo que atribui a Vargas é a justificativa da aversão de Rachel a ele e a tudo que se lhe associava. A começar pelo movimento queremista (Queremos Getúlio) liderado pelo comunistas em 1945, quando Prestes sai da prisão quase que diretamente para o palanque do homem que teria sido o responsável pelas torturas que sofreu e pela morte de sua mulher, Olga Benário, em um campo de concentração na Alemanha. A violência da ditadura Vargas serve também de pretexto para admissão com reservas que Rachel faz da violência da Ditadura Militar que ela ajudou a implantar no Brasil.
A amizade que ligava Rachel a Castelo Branco era muito anterior ao golpe de 64, havendo mesmo um parentesco entre os dois. Foi da fazenda dela, no interior do Ceará, que ele saiu para o voo fatal que causaria a sua morte. Castelo, a seu ver, era um homem íntegro, obcecado pela ideia de passar a presidência a um civil, democraticamente eleito. Ela conta que, durante uma conversa informal na Livraria Jose Olympio, quando perguntado qual era para Castelo Branco a palavra mais feia da língua portuguesa teria respondido: ditadura. Até mesmo a participação dele na conspiração que levou ao golpe é atenuada pela amiga.
“Porque eu conspirei com Adonias [Filho], Golbery… O Castelo não conspirou. Ele ficou em cima do muro até… Porque ele dizia que, sendo chefe do Estado Maior, não podia conspirar. Castelo era um homem exageradamente ético. Juarez, que era íntimo meu, era casado com uma prima minha. Enfim, a gente conspirava junto. E a revolução de 64, nós assumimos. Até o dia em que o Castello Branco entregou o governo, passou para o Costa e Silva. Aí, lavei as mãos. Eu tinha horror ao time do Costa e Silva. E na verdade, o Castello foi virtualmente deposto. Ele apenas quis evitar o choque. Engoliu o Costa e Silva, porque não tinha outro jeito.
(…) ele [Castelo] telefonava para a gente: “Oyama, vocês estão sozinhos? Então, eu quero ir aí desabafar.” Chegava lá em casa, contava tudo. Tomava conselho… Não tomava. Pedia e não tomava nenhum. E eu dizia: “Presidente, se o senhor aceitar essa prorrogação [do mandato], talvez acabe com a candidatura do Costa e Silva. O senhor no momento é insubstituível”. Ele dizia: “D. Rachel, o cemitério está cheio de pessoas insubstituíveis.” (…) Ele queria eleições, democracia e um presidente civil. Era o que ele queria. Ele não mandou fazer uma constituição democrática, rápido, para poder governar?”
Em artigo publicado em 18 de janeiro de 1964 e intitulado “ABC de 1963”, ainda com a conspiração em andamento, Rachel aproveita o glossário que apresenta com as palavras que marcaram aquele ano para alfinetar seus inimigos. Miguel Arraes que aparece na letra A, o “governador do povo”, assim mesmo entre aspas, seria uma “espécie de esfinge”. B era de bombeiro mas, diz a escritora “com licença da palavra, também é de Brizola”. A letra enigmática seria o Q, ela não diz explicitamente mas é claro que se refere a Janio Quadros que ela considerava o homem mais inteligente que jamais conhecera e que “podia estar lá em cima, mandando, endireitando. Não quis, quis começar tudo de novo. Por quê?”
Seis meses depois, a escritora questiona o regime, dizendo que, se de fato todo o mundo estava de acordo “em que o governo precisa identificar e punir os inimigos públicos que estavam leiloando o Brasil a essa espécie de socialismo degenerado que se convencionou chamar comunismo internacional”, todo o mundo também exigia que a eliminação dos focos de insurgência se fizesse sem caça às feiticeiras, “sem se atacar essa cidadela que o próprio coração da democracia: a liberdade de pensamento e de palavra”. Curiosamente Rachel revela desconfiança dos “aplausos da imprensa e dos governos Salazar e Franco” ao golpe de 1964 e especula: “Será que esperam que a marcha da revolução nos arraste a uma ditadura semelhante à deles?” Ao que parece, Rachel de Queiroz estava entre aqueles tantos que acreditavam que através de um golpe de Estado se tiraria do poder um governo democraticamente eleito para pôr em seu lugar outro governo democraticamente eleito, só que agora governando do jeito que ela e seus amigos gostariam. Um erro de cálculo parecido com o que assistimos hoje, quando setores de uma classe média educada promovem manifestações clamando por um golpe militar para estabelecer um governo democrático, em seguida. Desde que o governo eleito não seja o do Partido dos Trabalhadores
A participação de Rachel de Queiroz e de Adonias Filho, que a escritora dizia ser seu melhor amigo, na conspiração que levou ao golpe de 1964 talvez possa ser melhor esclarecida através de documentos, cartas e outras produções dos dois escritores guardadas em seus arquivos. Certamente um estudo dessa natureza ajudaria a entender a mentalidade de parte da elite intelectual brasileira do século XX, a partir do pós-1930, em suas ambíguas relações com os direitos da classe trabalhadora e com as necessidades do povo brasileiro em geral e das formas adequadas de fazer com que aqueles fossem atendidos.