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Palavra e silêncio – por Paulo Mendes Campos

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

 

Palavra e silêncio

Paulo Mendes Campos

Se disser que não gosto de oratória, só poderá parecer ressentimento, pois minha carreira de orador oficial do grêmio literário do colégio não durou nada. As raras tentativas que fiz de improvisar arengas não chegaram a desasnar-me. Entre aquilo que eu pensava e as palavras que se articulavam em minha boca não se estabelecia a menor corrente lógica. Um belo dia, finalmente, ao pronunciar, sem querer, a palavra polimorfo (grande demais para o meu tamanho) causei tanta hilaridade entre os colegas que resolvi encerrar esse meu breve e frustro expediente oratório. Mais tarde, disse a mim mesmo que me faltava por completo o estímulo prolatório – e fiquei consolado ao achar esse rótulo bonito para a minha falha.

Ressentimento ou não, passei a observar acuradamente o Homo loquens¹. Concluí com simplicidade que os oradores se dividem em duas categorias bem distintas: há homens (raros) capazes de expor fluentemente em público as suas ideias, sem apelar para os efeitos de garganta ou gesticulacão; há outros que disfarçam a ausência de ideias por meio de entonações, inflexões, gestos. Os primeiros são honestos; os segundos são farsantes. Entendi ainda, inversamente ao que se diz, que a boa oratória é aquela que se conserva boa quando escrita, e a má é a que perde todo o brilho no papel. Não que negue qualidades especiais ao orador mau, retórico e vazio; pelo contrário, é justamente por causa dessas virtudes de prestidigitação que podemos e devemos arguí-lo de amoralidade ou imoralidade. Prestigiar uma arte cuja virtude mais forte reside na habilidade em enganar-me é fazer o papel de bobo. Por isso, louvo e invejo aqueles que sabem desenvolver um tema diante dos outros na proporção em que dispensem os recursos tradicionais da oratória.

Neste mundo, que se complica dia a dia, precisamos ser simples e diretos; precisamos ser esclarecidos, e não persuadidos emocionalmente.

Há muitas coisas que a gente fala seriamente, mas todos pensam que é brincadeira. De minha parte sustento, por exemplo, que deviam existir conventos leigos, subvencionados pelo estado, onde a gente pudesse curar-se da sufocante atmosfera de palavras em que vive. A vida é oratória demais.

Coisa simplíssima como os verdadeiros hotéis de monges. Mobílias elementares, refeições frugais, um jardim com repuxo, celas desnudas e, acima de tudo, lei obrigatória do silêncio. Visitas proibidas. Máquinas modernas banidas. Luz de lampião. Nenhum livro.

O “monge leigo” faria voto por um prazo fixo: um mínimo de um mês. O candidato a estágio de qualquer duração passaria antes por uma prova, que o revelasse digno de merecer a bem-aventurança do silêncio e da solidão. Porque é em busca, realista e não romântica de solidão temporária, que vou imaginando meu convento. O mundo anda tão cheio de gente maluca e meio maluca por excesso de promiscuidade sem verdadeira convivência, por excesso de palavras sem conteúdo verdadeiro. As pessoas, antes de tudo, não conhecem mais a si mesmas, vivendo a vida que lhes impõe uma sociedade frívola, leviana, impostora. O convento ajudaria a corrigir-nos dessa terrível promiscuidade mental que é a vida moderna.
Mas todos os governos estão a cargo de homens mais teóricos do que realistas. Ou de poetas, no pior sentido da palavra. Meu convento não existirá nunca. Tant pis!²

1 Homem que fala.
2 Pouco importa.

Publicado na revista Manchete em 04.04.1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , , , ,