Ivan, o Terrível – parte 2, de Sergei Eisenstein, O processo, de Orson Welles, e A noite, de Michelangelo Antonioni, foram exibidos em 1 de fevereiro no IMS-RJ, dentro da mostra Em 1964, que tem uma edição a cada mês. Neste artigo, José Carlos Avellar se debruça sobre Ivan, o Terrível e a repercussão do filme no Brasil.
Não foi propriamente como um filme que Ivan, o Terrível – parte 2, de Sergei Eisenstein, foi recebido ao estrear nos cinemas do Rio, na metade de fevereiro de 1964. Foi tomado como um dado a mais para o debate político entre esquerda e direita, que fechava o cerco em torno do governo João Goulart.
Nas ruas, cartazes do Comando de Caça aos Comunistas: uma caveira com a exclamação “Eu sou comunista, está na cara!”, ou a pergunta “Já matou seu comunista hoje?”. Nos jornais, a desvalorização da moeda (um dólar valia 600 cruzeiros), a inflação (80% ao ano), as tentativas de acordo para a dívida externa (300 milhões de dólares de encargos), o racionamento de energia, as greves, os enfrentamentos no campo, a lei de remessa de lucros. Carlos Lacerda acusava: “o Presidente desencadeia a desordem como prelúdio à implantação de um governo sindicalista”. Darcy Ribeiro defendia: “através das reformas agrária, eleitoral, tarifária, bancária e constitucional”, o Governo quer transformar o país “numa nação que pertença efetivamente aos seus 80 milhões de habitantes” e deixe de ser “um clube fechado para cinco milhões de privilegiados”. O deputado Último de Carvalho advertia: “se o Presidente confiscar nossas propriedades, ou se permitir que alguém as confisque, haverá também quem confisque o seu mandato de Presidente”.
Em fevereiro de 1964 Goulart anunciava um grande comício em março, “nas escadarias da estação da Central do Brasil, diante da multidão operária estendida à sua frente”, em favor das Reformas de Base. Circulavam rumores: “março está sendo visto nas rodas políticas da oposição como o mês do golpe”; a Marinha começava a preocupar-se com “o processo de comunização do Brasil”.
Lançado numa única sala, o cinema da Maison de France, e sem as cores originais, o trecho colorido copiado em preto e branco, a segunda parte de Ivan, o Terrível foi vista como uma oportunidade de deslocar a discussão da obra para o contexto em torno dela, de modo a inseri-la no debate ideológico daquele momento. Indiretamente, discutia-se no filme a luta entre a trajetória do personagem, então, como imagem das intenções do Governo: “Um corte trágico sem qualquer escrúpulo histórico para uma exaltação da figura de Ivan, que pode ser tomada como tentativa de justificar, indiretamente, os crimes de Stalin e endeusar os poderes absolutos do Estado” (Armindo Blanco, O Globo, 2 janeiro); a do realizador, como imagem da ameaça que pairava sobre todos, caso o Governo concretizasse seus planos: “A sua época foi de negrume. Shumiatsky, então ditador do cinema soviético, pretendia encaixar todas as manifestações artísticas dentro de dogmas políticos em que qualquer não conformismo era tachado de heresia” (Octavio Bonfim, O Globo, 24 de fevereiro).
As resenhas e crônicas ocuparam-se um pouco mais de Stalin (que na verdade inspirou o desenho do personagem) do que de Ivan. Ou um pouco mais de Eisenstein que do Terrível. Fundamental, para isso, assinalar que o diretor, “sincero em sua ideologia básica, gozando da admiração pessoal de Stalin”, foi vítima “do pior momento do terror cultural staliniano”(Octavio de Faria, Correio da Manhã, 3 de março); que “o segundo Ivan proibido, a trilogia paralisada, o artista em definitiva desgraça foi compelido a reconhecer publicamente os erros que cometera, por não haver seguido ao pé da letra ‘o método Lenin-Stalin de percepção da vida real e da história’ em artigo no qual foi obrigado também a elogiar seus algozes, considerando justa a decisão do Comitê Central”, (Moniz Vianna, Correio da Manhã, 16 de fevereiro); que o filme “marcou o final da carreira ativa de um dos maiores gênios (para nós o maior) da cinematografia. Desde essa ocasião, Eisenstein, então com 48 anos, até sua morte, ficou reduzido a escrever livros e dar aulas de teoria cinematográfica” (Tati de Moraes, Última Hora, 24 janeiro).
Desse modo, menções ligeiras à “elaboração requintada e o preciosismo estético” do cinema de Eisenstein, como na citada crônica de Armindo Blanco: “a riqueza plástica do filme frequentemente nos deixa atônitos, provocando um deslumbramento que permanecerá como uma inesquecível experiência”. Essa, talvez, a sensação que primeiro salta aos olhos desse filme realizado na primeira metade da década de 1940 e proibido pela censura soviética até 1958, a sensação de que hoje, em boa parte, vemos cinema pelos olhos de Eisenstein, “pelos ensinamentos que ele nos oferece no campo da síntese audiovisual e da utilização criadora dos recursos de montagem”. Saltar aos olhos é bem a expressão ideal, porque o espectador, em Ivan, o Terrível, está todo o tempo diante de personagens que agem pelo olhar num cenário de paredes cobertas de pinturas em que, como nos ícones das igrejas russas, destacam-se os olhos bem abertos.
Assim como numa ópera, onde é todo ouvidos, o espectador é colocado diante de personagens que agem dramaticamente fazendo exatamente o que ele faz na plateia, ouvir – tal como em La Bohème Mimi se esconde por trás de uma árvore para ouvir o diálogo entre Rodolfo e Marcello –, assim como numa escultura barroca o observador é colocado frente a figuras em que se destacam os movimentos das mãos, desse mesmo modo, em Ivan, o Terrível os espectadores estão diante de personagens que fazem exatamente o que eles mesmos estão fazendo no cinema: olham. São muitas as cenas em que os olhos se destacam nas pinturas das paredes do castelo de Ivan e, principalmente, muitas as cenas em que a luz e a composição do quadro concentram a atenção nos olhos do personagem – Ivan, Efrosínia, Vladimir, Basmanov. Ópera visual, Ivan, o terrível se caracteriza pela musicalidade do espaço, do gesto dos personagens e do entrelaçamento dos planos – a música aqui sentida como o que é capaz de desenhar o que não consegue se expressar de outro modo.
Há no cinema os que fazem cinema (Chaplin), os que fazem escultura (Resnais), os que fazem romances (Visconti), os que fazem teatro (Bergman), os que fazem música (Antonioni), os que fazem circo (Fellini), os que fazem poesia (Godard), os que fazem ensaios (Rosi), os que filosofam (Rosselini) e os que materializam o sonho (Buñuel), enumerou certa vez Glauber Rocha. Eisenstein, para Glauber, no cinema fazia pintura.
Fevereiro de 1964, nos cinemas, ao lado do filme de Eisenstein: O atentado, de Jerzy Passendorf, A guerra dos botões, de Yves Robert, Regresso ao lar, de Luigi Comencini. E mais: o Kafka de Orson Welles, O processo; a música de Antonioni, A noite; e o circo de Fellini, Os boas vidas. Enquanto isso, Glauber, com a escadaria de Odessa na cabeça e uma câmera na mão, na montagem de Deus e o diabo na terra do sol citava Eisenstein na cena em que Antônio das Mortes mata os beatos do santo Sebastião no alto da escadaria do Monte Santo.
* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.