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Opiniões sobre o Opinião – por José Ramos Tinhorão, Sérgio Porto e Sérgio Cabral

Confronto: a nossa música popular

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(Diário Carioca, 3/1/65)

Sérgio Porto

1. Todas às vezes que a classe média se serve da música genuinamente popular, sua tendencia é conspurcá-la, pela sua natural ojeriza ao povo e sua eterna tendência para aristocrata. Daí a deturpação que exerce sobre a música de origem popular e tudo o mais que tem característica folclórica. Apesar disso, a classe média dá à música popular um âmbito maior num certo espaço de tempo, mas depois vai deturpá-la e abandoná-la com a mesma leviandade com que a interpreta. Nem por isso deixa de haver vantagem para a música popular no interesse da classe média. A classe média isolada em apartamentos, tentando criar uma música sua, sem ter tradição, caráter ou qualquer ideal, fracassou porque foi buscar no “jazz” (e pior do que isso, no falso “jazz”) a sua inspiração. Agora, com a classe média interessada na música popular autentica, fará música sim, deturpando a música popular, mas criando uma nova música, bem melhor do que a “bossa-nova”, posto que está se inspirando em fonte bem mais fecunda.

2. Evidentemente há vantagem para o compositor popular em ver sua música tornar-se do interesse da classe média. Mas isso em relação ao compositor (comercialmente) e não à música propriamente dita. Toda música de origem folclórica tem raízes sociológicas. O seu tema pode ser individualista, até certo ponto, mas no cômputo geral ela é sempre um lamento, um protesto, uma reivindicação de classe. Em suma: toda música de origem folclórica traz mensagem social. A preocupação em protestar, através da música, contra injustiças sociais não é novidade.
Apenas agora, como as injustiças são maiores, maiores são os protestos.

3. Não foi a “grande” classe média que se interessou pela música popular atual (Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, Cartola, Elton Medeiros, João do Vale, Ismael Silva) e sim gente da classe média revoltada com a classe média (Boal, Vianinha, Ferreira Gullar, Hermínio Bello de Carvalho etc.). A “grande” classe média aderiu por leviandade. Por exemplo, nunca uma senhora da CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) – embora tenha cantado diversas vezes “Amélia” – percebeu que “Amélia” é o grito de protesto da amante anônima. Aliás, os aristocratas (meninos do Castelinho, Jirau etc.) também aderiram e vão a ensaio de Mangueira, mas estes já são os requintados da leviandade. Vão porque está na moda, mas no fundo não gostam e são capazes de confundir a Chica da Silva com a “My Fair Lady”.

4. No espetáculo Opinião, os intelectuais da classe média sem nenhum encanto pela classe média aproveitam muito bem a música popular, para enviar mensagens diretas aos falsos salvadores da Pátria, mas isto – embora novo em teatro musicado (na boa acepção) – é velhíssimo na boa música popular. É inclusive o grande tema da música popular. A música afro-americana, obviamente, começou com os escravos. Estes não podiam nem falar enquanto trabalhavam. Começaram então a cantar. Primeiro para afugentar a tristeza, depois por uma necessidade de comunicação e de reivindicação social. E só puderam cantar, porque seus feitores descobriram que cantando eles produziam mais. Então, com essa mínima parcela de liberdade eles imediatamente iniciaram uma escola musical cujo tema central era o lamento contra a sua condição social, o protesto, e depois a reivindicação.

5. O fenômeno Nara Leão pode ser visto de dois prismas. Para a música popular, Nara é negativa, pois ela representa o interesse de uma classe média que vai se inspirar nessa música para criar uma outra de menor valor que irá ofuscar a verdadeira. Como musa da nova tendência musical-política ela é positiva pelas razões já expostas; ou seja, a inspiração no bom samba. Não se negue a ela este serviço, mas não se faça dela uma Joana D’Arc do telecoteco, como querem alguns, inclusive aqueles que a idolatram por razões sentimentais, mas que, sendo muito tímidos para irem diretamente a ela declarar seu encantamento, fazem-no através de crônicas romântico-literárias, fingindo uma crítica com interesse polêmico. Nara, no entanto, está para o canto como Gigi da Mangueira estava para a dança. Depois do fenômeno Gigi, a classe média passou a dançar melhor o samba, mas já está adicionando novidades que deturpam a sua coreografia básica. De qualquer maneira, este novo samba dançado é melhor do que o samba que se dançava antes nos clubes elegantes e que fora imposto pelo cinema americano (Carmem Miranda etc.). Gigi prejudicou as escolas de samba, que hoje desfilam no asfalto como se fossem companhias de Walter Pinto ou Carlos Machado. Acontecerá o mesmo com Nara. Hoje a classe média bate palma para sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho e outros lídimos representantes do samba, mas chegará o dia em que, inspirada neles, a classe média virá com o seu próprio samba. De qualquer forma um samba melhor do que essa “bossa-nova” que as mocinhas tipo noivas de Drácula (olhar triste, olheiras profundas cabelos revoltos e palidez total) andam cantando agora.

Sérgio Porto (1923-1968) foi escritor e cronista, amante da música popular e criador de tipos como Stanislaw Ponte Preta.

Sérgio Cabral

1. É preciso encarar o samba como um todo. Como um fenômeno cultural de nossa cidade, de formação recente, não sendo, por isso, válida para o seu caso a afirmação de que “a contradição está expressa no determinismo histórico que mostra que uma cultura não se transplanta, mas se cria pela sedimentação progressiva de fatores condicionantes, não só apenas durante uma vida, mas durante muitas gerações”.

O que se deve condenar é que, a essa altura, o nosso samba seja deturpado por recursos apanhados no estrangeiro. Como o Brasil sofre um grande assédio da cultura norte-americana, um determinado tipo de compositor, músico ou cantor vem tentando impregná-lo de fragmentos jazzísticos, transfigurando-o. Artistas que localizaremos na Zona Sul, por razões óbvias, são os responsáveis por essa tentativa de deturpação do samba. Mas não a classe média inteira, ou, mais precisamente, não a maioria dos nossos compositores, músicos e cantores da classe média.

2. Se o samba, hoje, possui características próprias facilmente identificáveis — há estudiosos que consideram não ter ainda o samba alcançado a sua forma definitiva — deve-se à contribuição de músicos classe média típicos: Pixinguinha era um classe média (estudou no São Bento, como Lamartine Babo, Noel Rosa, Henrique Vogeler e Marino Pinto), além de José Francisco de Freitas, Freire Júnior, Luís Peixoto e outros que fizeram samba na década de 1920 quando ele adquiria as suas formas.

O mais antigo compositor carnavalesco vivo, João de Barro, é nada mais nada menos que o ex-estudante de engenharia Carlos Alberto Ferreira Braga, filho de importante industrial de Vila Isabel. Ari Barroso era sobrinho do ex-ministro da Fazenda Sabino Barroso. São diferentes as colorações sociais daqueles que fizeram o samba: o marceneiro Armando Marçal, os marginais Brancura e Baiaco, os malandros Ismael Silva e Wilson Batista, os médicos Alberto Ribeiro e Joubert de Carvalho, o motorista de ambulância Moreira da Silva, o jornalista Antônio Nássara, o pedreiro Cartola, os oficiais do Exército Luís Antônio, Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, o radialista Almirante, o barnabé Zé Kéti, o oficial de justiça Donga, o estudante de medicina Noel Rosa, o boêmio Nelson Cavaquinho, o escrivão de polícia Haroldo Lobo, o professor do Pedro II Moredo Dornelas e tantos outros.

Entre os cantores, a lista atingirá quase exclusivamente a classe média, de Mario Reis (que até hoje mora no Copacabana Palace) e Nara Leão, passando por Marília Batista, filha de um médico, Francisco Alves, Luís Barbosa, Ciro Monteiro, Araci de Almeida, Linda e Dircinha Batista etc.

3. A música popular carioca sempre teve entre seus expoentes elementos das camadas mais baixas da população e da classe média. Se em matéria de samba foram aquelas classes chamadas mais populares que propiciaram as condições para a sua existência, a classe dita média também colaborou com a sua criação e no surgimento de outros gêneros musicais, tais como o maxixe, a modinha, o choro etc.

Pelas suas características demográficas e geográficas, o Rio de Janeiro — Estado que não passa de uma cidade-estado — não pode ser dividido socialmente em guetos culturais, como deseja o J. Ramos Tinhorão, ilustre sociólogo e “copy-desk” do DIÁRIO CARIOCA. Por isso, o samba carioca como ele é conhecido, isto é, o samba em suas várias concepções, o chamado samba de rádio, é o resultado da contribuição das várias camadas sociais do Rio de Janeiro, que resumem no adjetivo pátrio carioca.

Não me parece justo condenar a participação da classe média em manifestações culturais que tiveram nela, inclusive, alguns dos seus esteios. O que é preciso é distinguir a intromissão de culturas estranhas em manifestações marcadamente populares, como ocorre ultimamente com as escolas de samba. Mas isso é outra história.

4. Agora, observa-se um movimento que, na verdade, visa a promover a nossa música aqui mesmo. O Zicartola foi um dos primeiros resultados desse movimento. O espetáculo Opinião é outro. Há deturpação do samba nisso tudo, embora o movimento seja liderado por elementos da classe média? E certo que não. Não é nem “apropriação”, pois esse é um movimento de afirmação dos nossos compositores populares perante aquelas camadas que, por várias razões, não estão voltadas para o samba carioca. Para acentuar a importância do movimento, basta afirmar que o Zicartola é o primeiro restaurante onde há somente a música popular brasileira e Opinião é o primeiro “show” musical brasileiro com uma nova estrutura, uma estrutura que diríamos brasileira.

Invalidar a participação da classe média na música popular brasileira é que é de um idealismo que chega ser até ingênuo. O próprio retrospecto feito por J. Ramos Tinhorão no DIÁRIO CARIOCA prova que a “fatalidade histórica” é essa: a classe média, quando não cria, rapidamente assimila qualquer tipo de manifestação de cultura popular feita no Brasil.

O caso do samba não é o das escolas de samba. Não se pode negar a existência de uma cultura de classe. As escolas de samba são uma forma de cultura popular autêntica. Intrometer-se nela para “aperfeiçoá-la” é que é falso, pois a classe média nunca esteve presente nem na criação nem no desenvolvimento das escolas de samba.

Bem. A história era outra e acabei fazendo uma tentativa de defesa da classe média. No fundo, é uma defesa em causa própria.

5.  A única diferença do fenômeno Mario Reis para o fenômeno Nara Leão é o que o primeiro chegou revolucionando a maneira de interpretar o samba. É fácil explicar: o seu aparecimento coincidiu com o aparecimento do rádio e das gravações elétricas. Não era necessário o uso de “voz forte”, igual às de Francisco Alves e Vicente Celestino. Como Nara Leão, ele também era de “boa família” ou de “família distinta”, como se dizia na época. Nara Leão é egressa da “bossa-nova” — para usar a expressão de um recente desafeto — e aderiu ao samba tradicional. Como ela mesmo diz, não pretende revolucionar, mas apenas “transmitir o recado”. Ocorre que, talvez involuntariamente, ela acrescentou algo de graça, de diferente mesmo das demais interpretações. Talvez nem crie uma escola, mas é certo que fez o bastante para merecer o respeito dos admiradores do samba carioca e a gratidão dos sambistas que há muito não conseguiam gravar as suas belas obras e que tiveram nela uma intérprete pelo menos sincera.

opinião cabral from Laura Liuzzi on Vimeo.

Sérgio Cabral é jornalista e historiador de música popular.

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