O vendedor de gravidade
Paulo Mendes Campos
Famoso neurologista aqui do Rio me disse uma vez que Charlie Chaplin era um gênio. Antes que eu me espantasse da grande novidade, ele acrescentou: “Bem, não estou falando do ponto de vista artístico; admiro a arte de Carlitos, mas disso não entendo; porém, do ponto de vista neurológico, sei que ele é um gênio”. Acabou me explicando que, para cada gesto, há um único movimento perfeito: Chaplin executava infalivelmente os movimentos perfeitos. Comentei com o médico que também eu conhecia um caso genial, o do Nélson Fonseca, meu companheiro de peladas veteranas, só que o Fonseca executa infalivelmente o movimento errado. Um gênio às avessas.
Deixando de brincadeira, Pelé é outro ser humano que atinge a “genialidade” por intermédio de um sistema nervoso perfeito a serviço de um sistema muscular jovem e forte. Pelé está para um jogador comum assim como um avião a jato está para um avião convencional; ou como a eletrônica está para a eletrotécnica.
Pois é, a verdadeira fonte de renda de Chaplin ou Pelé está no sistema nervoso, ao passo que o nosso Fonseca tem de fazer dinheiro, e bom dinheiro, editando Sedução e outras revistas fascinantes.
Há muito tempo brinco de descobrir a verdadeira fonte de renda ou prestígio das pessoas. Existem sujeitos, por exemplo, que deviam colocar no primeiro plano de uma declaração de bens esta verdade: falta de caráter. Ingressam em todas as profissões, mas o capital que multiplicam é a falta de caráter; donde se vê que o sinal menos pode dar mais.
Conheço outros que vendem conversa. Um deles levou o sistema à perfeição; dizíamos que ele conversava com um taxímetro ligado e mandava a conta depois. Pode parecer exagero, mas a verdade é que o artista em apreço construiu, conversando, um palacete no Rio, uma casa de campo em Petrópolis e uma boa vida por toda a parte. Aliás, o bom papo, de tanto conversar e brilhar, acabou castigado: criaram-lhe o emprego de public relations. Foi-se o encanto.
Às vezes penso nos humoristas. Bons ou maus, grossos ou finos, que seria deles se não existissem, para os dias de graças magras, o adultério, a efeminação, a embriaguez, a burrice, a sogra, a ilha deserta?
E que seria dos laboratórios farmacêuticos se acabassem a gripe e a tuberculose? Que seria dos advogados se a humanidade não estivesse colada à marema dos sete pecados capitais?
Vocês sabiam qual é a maior empresa do mundo? Maior que a General Motors, a General Eletric e a United States Steel reunidas? Também eu não sabia, até que li há umas três semanas no Time: é a Companhia telefônica dos Estados Unidos. Vende o quê? Conversa, como o public relations. Trocando em miúdos, vende principalmente negócios, amor e tédio — três poderosos produtos da prosperidade telefônica.
Mas só existe um tipo que realmente me impressiona: é o do vendedor de gravidade. O homem que não é nada: é grave. Não é bom nem mau: é grave. Não é estúpido nem inteligente: é grave. Nem audacioso nem prudente: é grave. Integralmente grave. Gravemente grave. Desde o embrião ele é grave. Nem brilhante nem relapso no colégio: grave. Seus companheiros de juventude foram o que é o destino: um caiu de amores, um desandou a estudar, um deu para beber, um se matou, um entrou para o Partido Comunista, um escreveu sonetos, um foi plantar borracha no Ceilão. O grave continuou grave. Casou-se gravemente, nem frio nem quente. Procriou gravemente. Nunca teve ideias: bastava-lhe ser grave. Falava o mínimo: com o máximo de gravidade. Não era a favor nem contra: era grave. Foi subindo os postos, nem por merecimento nem por antiguidade: por gravidade. Não era preciso reconhecer, era suficiente ver, que ele era grave. Tinha cabeça grave, olhos graves, ombros graves, pernas graves, voz grave, gestos gravíssimos. Competente? Sincero? Bom sujeito? Que importam essas coisas quando um homem é grave! E como se chegar à verdade quando um homem está blindado em uma gravidade inexpugnável! Liberal? Conservador? Ele só acreditava na lei da gravidade. A origem da vida é grave. O fim da vida é grave. Durante a vida é grave. O Brasil é grave. Quando lhe perguntavam a respeito de uma situação, ele pensava duas vezes: depois respondia que a situação era grave. E assim ele foi, vai e irá. Andando gravemente em um silêncio grave. Criando gravidade em torno de si. Abrindo perspectivas graves. Comprando e vendendo gravidade. Grave. Grave. Grave.
…
Publicado na revista Manchete, em 4.7.1964