O reino das lembranças
Paulo Mendes Campos
Ilusão? Engano? Usarei a palavra contra a evidência: a certeza. Queria dizer o seguinte: ao deitar-me, suaviza-me às vezes a certeza de que o meu passado existe em algum lugar. Essa é a constante mais desarrazoada de minhas imaginações. Mas não tem o exaspero dos que se quebram de encontro ao fato consumado: é uma unção, um sentimento de inocência, uma certeza.
Quando pedia contas ao tempo, em minha adolescência, a náusea me desnorteava. Essa necessidade, fundamental em mim, de não perder o tempo, de transformá-lo em espaço, era intensa como a loucura. Inclinei-me sobre livros. Anotei em um caderno o desenvolvimento algébrico de meu desespero. É que o adolescente não é um poeta, é uma vítima da poesia. A lógica com que procurava salvar do naufrágio o meu passado levou-me ao limite extremo do abismo-lógica. Singular é que o presente só me interessava pela sua possibilidade de converter-se em passado, e assim, aparentemente, o exercício de viver só poderia ser para mim um cansativo comércio com a morte. Perdendo o minuto que passa, podia preservá-lo, recolhê-lo entre minhas lembranças, e só então apreender a sua fulgurante autenticidade. Confesso que mesmo o futuro, o que ainda não se transfigurou em saudade, pesava-me como se fosse vida desperdiçada.
Nesse procedimento taciturno existiria um desejo velado de suicídio? Não creio. Existia apenas a prefiguração da calma que hoje me faz amável o momento que precede o sono, quando, em algum lugar, sei que o passado me espera e me convida e me dispensa de tantas realidades inacreditáveis. Porque o excesso de consciência é como o excesso de luz; o fulgor obsessivo do presente fatiga alguns espíritos.
Os objetos que se colocam em meu ângulo de visão, por simples e familiares que sejam, me obrigam a um excesso de concentração mais do que fisicamente doloroso. É como se estivesse no teatro, assistindo a uma peça conhecida, justamente no momento em que nos crispamos para ver o personagem praticar o seu irreparável erro.
Por outro lado, se fecho os olhos e os outros sentidos, deixo que me trabalhem a dor que me ocupa, a alegria que me movimenta, a ideia que me diverte, a ideia, a dor, a alegria me penetram, me preenchem, e me incompatibilizam com os gestos que me forço a fazer para continuar vivendo. Digo ainda: o mais simples e familiar, enquanto permanece duramente representado em minha consciência, é o que mais me paralisa e, se assim posso dizer, o que mais me irrealiza.
Dou um exemplo: vejo agora a parede áspera de um edifício. No instante em que a vejo é como se ela também me visse, negando, consequentemente, a vida de meu ser. Para que eu volte à vida, devo retribuir a esta parede a sua natureza de lembrança, única dimensão em que as coisas não me negam. Acredito assim que o mundo exterior seja formado de lembranças.
O passado é o espaço de cada um. O que aconteceu é tarefa já cumprida, vida que se obteve de percepções ilusórias, reino tranquilo dos emotivos. Eis por que estremeço todas as manhãs, quando o mundo se impõe a mim outra vez. No decorrer de um dia há ciladas suficientes para que o passado de um homem se transforme com violência. Preciso viver com atenção, escolher os meus passos, trocar esse gesto por aquele, dizer essa e não aquela palavra, silenciar, ver, sentir, para não comprometer o que vou inventando para a memória.
Admito no entanto que às vezes o presente já tenha uma suavidade de lembrança. São raros momentos. Esse campo que vejo ao entardecer, plantado de um milharal que acabou de pendoar, com esse braço de rio barrento, essas vacas sólidas e plácidas, a linha dos eucaliptos na fímbria de um outeiro, onde se armou um aro azul, o único halo azul-azul do céu cor de chumbo, tudo isso veio encontrar-me em uma tal limpidez de alma, em um tal despojamento das ambições e dos medos nos quais nos destroçamos, que não consigo mais distinguir aquele fulgor obsessivo de que falava. Tem uma gravidade de lembrança. Possivelmente é uma lembrança. Já não sou eu que lembro e configuro as coisas: sou lembrado. Esse momento ao entardecer se lembra de mim e talvez guarde em uma dimensão desconhecida a imagem do que sou atravessando esse campo e refletindo todos os seus símbolos em uma quase-perfeição. Me acomodo em uma gratidão feita de serenidade, porque o meu passado de repente se lembrou de mim e veio ver-me. A despeito de minha miséria, dos meus olhos turvos, alguma coisa em mim merece às vezes esse milagre. E eu o conservo como um amuleto que me protegesse do desastre cotidiano.
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Publicado na revista Manchete, em 1º de agosto de 1964.