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O mainá – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 24.06.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 24.06.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens misteriosas
O mainá
C.D.A

Tuércele el cuello al cisne… Quem torceu o pescoço ao mainá de Garrincha certamente nunca leu o famoso soneto de Enrique de Gonzalez Martinez, que manda sacrificar o cisne de plumagem enganadora e reverenciar o mocho, sábio intérprete do silêncio noturno – tudo isso em termos de manifesto estético. Não leu, mas foi ao mainá e cassou-lhe a palavra para sempre – ao mainá que falava tanto e era uma alegria entre as tristezas profissionais e morais de Garrincha.

Quem foi o ator desse ato não sabemos, e a mim não interessa identificar fulano ou fulana. O que sabemos é que inúmeras pessoas poderiam tê-lo cometido. Haverá dezenas de milhares de assassinos em potencial do mainá, e não serão assassinos por vocação ou impulsão; podem até ser ótimas praças, mas cederiam à força de um pensamento mágico, que sempre paira entre o céu e os seres.

Desde o momento em que se correlacionou a proximidade da ave com perturbações na arte futebolística de Garrincha, a ideia de eliminar o mainá assumiu caráter liberatório. Matar o mainá era evitar a morte de Garrincha – a morte desportiva, de joelho artrosado, de jogo frouxo, sem graça lúdica.

O bom torcedor – e esta palavra já contém um princípio de estrangulamento – não recuaria diante de um holocausto que lhe é sugerido tanto pela Bíblia como pela mentalidade primitiva subjacente no civilizado de hoje. Se Abraão não hesita em imolar o próprio filho, só para satisfazer um capricho da perversidade divina, e, dispensado de consumar o sacrifício, ainda assim atira um carneiro ao fogo para não ficar de mãos inúteis, por que poupar a vida de uma ave se a sua eliminação conjura poderes maléficos que se encarniçam contra o mais simpático, o mais desarmado, o menos reflexivo dos campeões brasileiros?

É mesmo o ato de Abraão às avessas: a morte em defesa do filho, pois a essa altura todos veem em Garrincha o filho geral, a criança mimada que faz besteiras e que cumpre defender de unhas e dentes, tanto mais generosamente quanto ele é o filho pródigo da Escritura. Outros fundamentos do atentado estão em Frazer, que chega a anotar, em povos situados nas etapas sociais da caça, do pastoreio e da agricultura, o costume de matar o próprio deus, se daí resulta benefício para a comunidade. No caso, o beneficio é colossal, pois com a recuperação de prestância de Garrincha se salva aquilo que o filme de Joaquim Pedro de Andrade chamou inspiradamente de alegria do povo.

O que fica dito parece demonstrar que aprovo a morte cruel do mainá. Não aprovo coisa nenhuma, e a vida de um mainá me parece tão importante quanto a boa forma de Garrincha. Nada posso, entretanto, contra a mentalidade mágica, e não sei se neste momento, na Índia, uma partícula da alma universal não se deslocou misteriosamente, tangida pela morte do mainá, e quem pode prever as repercussões disso tudo em um caso tão complicado?

Nota do site: Mainá é uma espécie asiática de ave falante cujo exemplar foi dado ao jogador Garrincha por Carlos Lacerda, governador do Rio de Janeiro, como presente pelo bicampeonato da Copa do Mundo de 1962. Reza a lenda que o pássaro, grande paixão do craque, era capaz de falar “é do palácio”, “gol” e “gostosa”. Pouco depois do golpe militar, o jogador, cujo contato com a política se dava de forma indireta por meio de Elza Soares, com quem se relacionava, teve sua casa sumariamente invadida por sujeitos não identificados. Era madrugada quando eles puseram Garrincha, sua mãe Rosária, Elza e os três filhos nus contra a parede; reviraram alguns cômodos; e deixaram o que naqueles tempos se poderia considerar como aviso: o pássaro querido foi morto.

Publicado no jornal Correio da Manhã, 24.06.1964 / Biblioteca Nacional

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , , , ,