Correio da Manhã
11 de janeiro de 1964
Livros da semana
Correio da Manhã, 11 de janeiro de 1964 / Biblioteca Nacional
Folclore de O braço direito
Homero Senna
Referimo-nos outro dia ao adagiário que é possível extrair do último romance de Otto Lara Resende. Nem só de sentenças morais é feito, porém, O braço direito. Há ali também, difusa, muita sabedoria popular, que o escritor naturalmente recolheu na São João del Rei da sua meninice e fez bem em registrar no romance. São itens de uma medicina caseira de puro sabor folclórico, que servem, aliás, para mostrar como se interpenetram as várias regiões culturais do Brasil, pois as mesmas mezinhas costumam ser receitadas, por pessoas do povo, em outras cidades e zonas do país. Para enxaqueca – chá de losna, de macela, de carqueja, de mané-turé, de erva-de-são-joão ou de melão-de-são-caetano (págs. 29 e 137). Para acalmar os nervos – chá de flor de laranjeira (pág. 33). Ainda para enxaqueca: molhar uma folha de laranjeira no vinagre e amarrá-la na testa, com um lenço bem apertado (pág. 91). Para tosse – chá de poejo (pág. 149). Para inflamação causada por espinho ou felpa – chá de pé-de-perdiz ou de folha de santarina (pág. 151). Para furúnculo – chá de orelha-de-coelho. O chá é bom para puxar (pág. 171). Para limpar o sangue – chá de flor de chaga (pág. 172). Para insônia – chá de papoula (pág. 214). Para pneumonia não há mezinhas especiais, mas convém ter cuidado, pois dizem que a doença “mata no sétimo, no décimo quarto ou no vigésimo primeiro dia” (pág. 51). Para abreviar os sofrimentos de um moribundo: misturar gema de ovo com farinha de trigo e lambuzar o umbigo do moribundo. “É uma simpatia que, dizem, é tiro e queda. Dá logo forças ao doente para morrer.” (pág. 141).
Correio da Manhã
5 de janeiro de 1964
Correio da Manhã, 5 de janeiro de 1964 / Biblioteca Nacional
Testemunhos
O melhor romance do ano
Octávio de Faria
Quando, no início deste ano, me referi a O retrato na gaveta (Editora do Autor, 1962), de Otto Lara Resende, fiz questão de salientar que dois aspectos do livro me pareciam particularmente interessantes: o “progresso técnico” de Otto Lara Resende em relação aos seus muito notáveis volumes de contos (O lado humano, 1952 – Boca do inferno, 1956) e a revelação de seu “talento novelístico”, que via concretizado numa das peças que compunham O retrato na gaveta: a quase novela O carneirinho azul. Aproximando, então, à sombra da indagação de suas possibilidades como romancista, o seu caso literário daquele do Joel Silveira de Alguns fantasmas (face à novela: Desaparecimento da Aurora) terminava o meu “testemunho”, de 03/02/1963, perguntando: “Trata-se, é evidente, num caso como no outro, de duas ótimas e autênticas novelas. Apenas, isso, porém? Os animadores de Otto Lara Resende, como os de Joel Silveira, têm o direito de colocar o problema. Caberá ao futuro responder”.
Se, até o presente momento, Joel Silveira ainda não nos deu nenhuma resposta positiva frente à indagação proposta – mas, longe de mim duvidar de que o venha a fazer, amanhã ou depois – eis que a resposta de Otto Lara Resende acaba de nos ser dada. E, confesso, jamais a imaginei mais positiva, mais total, mais irrespondível. O braço direito (Editora do Autor, 1963) não é apenas um romance, autêntico, inequívoco. É, sim, e não hesito em afirmá-lo, um grande romance.
Não sei, é verdade, se na minha euforia de saudá-lo como tal, não entra um pouco de impureza crítica, de vaidade. Não pelo ângulo profético pessoal – não pretendendo fazer concorrência a ninguém, nesse disputado setor – mas, simplesmente, pelo lado da vaidade masculina. Explico-me: com o encerramento do ano, estava já me impressionando muito o predomínio qualitativo feminino, em 1963, no terreno do romance. Não que não houvesse bons romances masculinos. Bastaria lembrar, entre outros (e por ordem de publicação), os de Otávio Melo Alvarenga (Doralina), Permínio Asfora (O amigo Lourenço), Moacir C. Lopes (Cais, saudade em pedra), Nelson de Faria (Cabeça-Torta). Mas, em plano numérico igual, os romances femininos logo se enfileiraram: Verão no aquário, de Lygia Fagundes Telles; Muro de pedras, de Elisa Lispector; Um simples afeto recíproco, de Maria Alice Barroso; Madeira feita cruz, de Nélida Piñon. E, por que não o confessar: sentia que o naipe feminino brilhara mais, brilhara como nunca, em 1963, enquanto a “gente do meu país” fora bem parcimoniosa em livros de qualidade.
Assim, encontrava-me já fortemente disposto a reconhecer que, no tocante ao romance, o ano de 63 fora inapelavelmente “feminino”, quando me chegou às mãos o romance de Otto Lara Resende. Naturalmente, não pretendo que sua inegável importância, suas grandes qualidades, possam ensombrar, no que quer que seja, o brilho das contribuições femininas. Livros como Verão no aquário, ou Madeira feita cruz, Muro de pedras ou Um simples afeto recíproco, não são romances que outros romances possam ofuscar. Apenas, pretendo que a aparição de O braço direito veio restabelecer um equilíbrio que me parecia perturbado pelo excesso de fulgurações femininas. Julgando-o, de todos os romances do ano, o melhor – independentemente de qualquer cogitação do sexo de seu autor – destruiu um mal-estar que minha vaidade masculina já começava a sentir.
A O braço direito, como romance, ainda pretendo voltar. Mas, em próximo “testemunho”, pois, aqui, já o espaço começa a faltar.
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