1º Caderno, Imagens por decreto
O beijo dos jovens
C.D.A
O Dia dos Namorados, o mais prudente é não comemorá-lo este ano, ou nunca mais. Pois um senhor deputado foi à Assembleia Legislativa e apresentou projeto que institui a Polícia de Repressão aos Crimes de Ofensa ao Pudor Público. Entre esses crimes figura o beijo, colocado assim na mesma área nefanda do homicídio, do incêndio culposo, do latrocínio, da moeda falsa e de outras práticas antissociais definidas no Código Penal. A crer na reportagem, entende aquele representante do povo que “o Rio está cada vez pior em matéria de beijo em público e outras carícias próprias dos jovens”.
Corri a um jovem da vizinhança e repeti-lhe a frase entre aspas. Ele concordou plenamente em que o Rio está cada vez pior, nesse sentido, por falta de proteção aos namorados, e ficou satisfeitíssimo ao saber que um deputado, enfim, cuidaria de matéria tão relevante, expressiva do grau de civilização de um povo. Pensou que seriam criados novos parques e comodidades para o exercício do namoro, que a administração velaria pela paz dos casais idílicos, considerando-os de interesse paisagístico e sentimental, etc. Pediu-me o nome do deputado para passar-lhe um telegrama eufórico, em nome da infinita classe dos namorados sem bosques, sem bancos de jardim e sem amurada de cais. Quando soube que o projeto visava à repressão policial, perdeu o rebolado.
– E que carícias são essas, próprias de jovens?
Esta pergunta, não a fiz eu a ele. Ele é quem a fez a mim. Vi-me no maior embaraço para imaginar algo sutilmente raro, que só ocorresse a adolescentes, e de que as pessoas amadurecidas perdessem a notícia, com a possibilidade de realizar. Alguma estranha perversão ou subversão da ordem natural, pecado e crime de brotos, selo terrível da juventude. E não achei. Tudo me pareceu igual, para a gente nova como para a velha, mesmos gestos e olhares, mesma expressão corporal ou da alma, que também se manifesta em carícias. Variando apenas de caras. Afinal, acudiu-me num estalo: serão as mesmas coisas, sim, porém mais puras na juventude, ainda não mecanizadas.
Não quis explicar ao rapaz essa diferença, se é que ela existe. Deixei-o com o aviso amistoso de botar as barbas de molho, e a sugestão de promoverem, ele e seus camaradas, uma vigília cívica para impedir a criação de mais essa espécie odiosa de polícia. E vim olhando pela rua, à cata de provas de exagerado amor, que o projeto visa a coibir. O que observei é que quase não há amor na cidade, de maneira visível; que as pessoas se beijam muito pouco e dir-se-ia até que muitas jamais souberam da existência do beijo. O das mulheres entre si, mais encontradiço, e puramente convencional, dá-se à distância de um cemitério, para defender a maquilagem, e não serve de argumento. Homens e mulheres raramente se osculam: parecem detestar-se cordialmente, quando não se mostram indiferentes como em face de um rochedo outro rochedo. Eu por mim faria um projeto multando (sem polícia especial) os casais que não se beijassem em público, com afetuosa gentileza; mas não sou deputado, e ouço dizer que está difícil fazer eleições.
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Publicado no jornal Correio da Manhã, 07.06.1964 / Biblioteca Nacional