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O armador – por Paulo Mendes Campos

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

O armador
Paulo Mendes Campos

Na primeira vez que fui a Porto Alegre queria ser soldado. Contava dezoito anos e (o verbo é adolescente) almejava uma vida a grande velocidade entre o céu e a terra, voando na liberdade da minha solidão. Aprendi ordem unida com um prazer físico, mas não cheguei a decorar a nomenclatura das peças de matar. O capitão, no outono, confiou-me a vigilância duma indolente estrada vermelha, por onde deveria avançar o nosso inimigo. Dormi devagar sobre o fuzil. Quando acordei, ventava nas rama­gens altas, e descobri de vez o meu coração paisano, um coração sem inimigos visíveis, e apenas armado de suas heranças obscuras, de seus conflitos. Foi naquele crepúsculo, longe do acampamento, que me senti des­ligado. O resto seria mero protocolo.

Dez anos depois, retornando em rápida visita à cidade, era funcionário público. Procurei o adolescente, aluno do terceiro ano da Escola Preparatória de Cadetes, e não o vi. Estava para sempre dormindo em Viamão, o cavaleiro duma estrada bordejada de pinheiros.

Tendo redigido a notícia de inaugura­ção do ambulatório da autarquia federal, caminhei um domingo inteiro. Fazia verão e quase ninguém passava pelas ruas. Subi a rua da Praia, cheguei a uma pracinha irremediável, sem abrigo contra o sol, sem raparigas em flor, sem crianças, sem men­digos. Mas havia uma porta aberta numa esquina. Olhei lá dentro e dei com um homem fazendo um caixão de defunto. Um armador, como dizem lá. Só o homem, o resto era caixão empilhado, caixão em pé, caixão deitado, pobres, ornamentais, gran­des do tamanho dum gigante, pequenos do tamanho dum anão.

O fúnebre carpinteiro era um camarada robusto e decidido. Assoviava um tanto. Eu admirava as suas mãos hábeis, precisas, talentosas, mãos que teriam feito cadeiras confortáveis, mesas onde as famílias jantam, berços, barcos para atravessar o Guaíba, marcos de porta, por onde se entra e sai, marcos de janela de onde se pode ver a vida duma rua, e até compor uma linda canção, se for a janela de Mario Quintana. Mas as mãos dum armador precisam fazer caixões para os que vão indo. Paciência.

Acontece que de repente me deu medo.

Primeiro, ele bateu os pregos e fez uma caixa comprida com uma tampa. Passando do mano a mano a uma rancheira enroscada, começou a lixar a tábua com um ruído que dava nos nervos. Eu não podia ir embora e também não podia deixar de compreender que aquele homem fabri­cava o meu caixão.

Contrafeito, ele fingia que não me via imantado de triste sedução. Fingia que não escutava o sobressalto de meu peito. Lixava a tábua com perversa minúcia, gozava o meu horror silencioso, provando com a palma da mão a maciez da madeira. Às vezes, parava o assovio no ar e assoprava a serragem. Com esquadro e lápis marcou três pontos de cada lado, onde pregou bem pregadas seis alças de metal dourado. Onde seis amigos fortes um dia se agarrarão. Adaptou a fechadura, experimentou demo­radamente a chave; como a lingueta emper­rasse um pouco, pingou um pouco de óleo na mola do trinco. Forrou por dentro dum tecido brilhante, não do meu gosto, e por fora dum veludo preto com bordados colo­ridos. Nas quinas aplicou rebites de latão, frisos prateados no sentido horizontal.

Quis dizer-lhe que se tratava dum caixão suntuoso demais para o meu modes­to defunto, que preferia ser cremado ou sumir num desastre.

Mas o frio armador nem olhou para a porta. O freguês do caixão não era problema seu. Com um preguinho na boca fez a última volta da repetida rancheira, afastou-se dois passos, contemplou com vaidade o trabalho, e viu que a sua obra era boa. Eu, que nunca prestei, aceitei com humildade o mau-gosto do meu caixão e rumei sem qualquer finalidade para a pracinha do Cinema Capitólio.

Depois, no meu sono em quarto frio de hotel, um esquife branco de velas negras ficou a noite quase toda descendo as correntezas de outro sonho.


Publicado na revista Manchete, em 21 de novembro de 1964.

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , ,