Imagens de rua
Lotação
C.D.A
Quando a senhora foi descer, o motorista coçou a cabeça:
– Mil? Como é que a senhora quer que eu troque mil cruzeiros?
– Desculpe, me esqueci completamente de trazer miúdo.
– Não posso não, a senhora não leu o aviso – olhe ele ali – que o troco máximo é de 200?
– Eu sei, mas que é que hei de fazer agora? O senhor nunca esqueceu nada na vida?
– Quem sabe se procurando de novo na bolsa…
– Já procurei.
– Procure outra vez.
Ela vasculhava, remexia, nada. Nenhum cavalheiro se moveu para resolver a situação. Àquela hora não havia cavalheiros, pelo menos no lotação.
– Então o senhor me dá licença de saltar e ficar devendo.
– Espere aí. Vou ver se dou um jeito.
Deu. Tirou do bolso de trás um bolo enorme e foi botando cédulas sobre o joelho.
– Está aqui o seu troco. De outra vez a senhora já sabe, hein?
E havia recomeçado a correr, como é destino de lotações, quando de repente freou e deu um tapa na testa:
– Ela ficou com a nota de mil!
Voltando-se para os passageiros:
– Os senhores acreditam que em vez de guardar a nota eu, de bobão, devolvi com o troco?
Botou a cabeça fora do lotação, à procura da senhora, que atravessara a rua:
– Dona! Ó dona! A nota de mil!
Ela não escutava. Ele fazia sinais, pedia a transeuntes que a chamassem, o trânsito entupigaitava-se, buzinas soavam.
– Toca! Toca!
Os passageiros não estavam interessados no prejuízo, como antes não se condoeram do vexame da senhora.
– Como é que posso tocar se perdi mil pratas, gente? Quem vai me dar outra abobrinha?
Encosta o veículo e, num gesto solene:
– Vou buscar a nota. A partir deste momento confio este carro com seus valores à distinção dos senhores passageiros.
– Deixa que eu vou, disse um garoto. E precipitou-se para fora.
– Será que esse tiquinho de gente consegue?
Via-se o garoto correndo para alcançar a senhora, tocá-la no braço, os dois confabulando. Ela abria de novo a bolsa, tirava objetos, o pequeno ajudava. Enquanto isso, o motorista lamentava-se:
– Esta linha é de morte. Primeiro querem que a gente troque um conto de réis, como se o titio fosse o Banco do Brasil. Depois carregam o troco e mais o dinheiro trocado, que nem juros. Essa não! E aquele garoto que não acaba com a conversa mole, sei lá até se ele volta.
Os passageiros impacientavam-se com a demora da expedição. O guarda veio estranhar o estacionamento e recebeu a explicação de força maior, quem é que me restitui meu cabral1?
O garoto voltou sem a nota. A senhora tinha apenas 960 cruzeiros, ele vira e jurava por ela, como escoteiro.
– Toca! Toca!
– Estão vendo? Um prejuízo desses antes do almoço é de tirar a fome e a vontade de comer.
O motorista disse isso em tom frio, sem revolta, como simples arremate. E tocou. Perto do colégio, o garoto desceu, repetindo, encabulado:
– Pode acreditar, ela não tinha mesmo o seu dinheiro.
– Eu sei – respondeu-lhe baixinho. Já vi que está ali debaixo da caixa de fósforo. Mas se eu disser que achei, esse povo me mata.
1 Na época, a cédula de mil cruzeiros – que circulou de 8.9.1943 a 30.06.1973 – era ilustrada com a efígie de Pedro Álvares Cabral.
Publicado no Correio da Manhã em 14/2/64.