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Leituras feriadas – Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 4.11.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 4.11.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens em casa
Leituras feriadas
C.D.A

Sábado, domingo e se­gunda-feira o Brasil não funcionou, e todos aprova­ram o desligamento da corrente. Quem tem carro se mandou pelas estradas, em demanda de um ponto mais cômodo para não fazer na­da; quem não tem, pegou o trem, que ainda presta ser­viço. E houve os que se dei­xaram ficar em casa, sábios dos sábios, que não se dão ao trabalho de procurar re­pouso fora de si mesmos.

O cronista foi destes úl­timos, mas aparentemente, pois na realidade se virou e viajou mais do que viajan­te de fim de semana. Bastou reparar na pilha de livros sobre a mesa, mandados por mãos amigas, livros a pro­vocá-lo com suas capas brilhantes, seus títulos prome­tedores, seus autores acredi­tados na invenção de histó­rias e ideias, e vou te con­tar: os circuitos mais va­riados se abriram nos dife­rentes caminhos da imagi­nação.

Numa câmara gótica e numa adega de Leipzig, fo­ra outros sítios mais ou me­nos misteriosos, assisti ao jogo de perde-ganha do dr. Fausto com o Diabo na limpa tradução que Antenor Nascentes e José Júlio F. de Sousa fizeram do drama de Goethe; e eis-me levado a jato à Grécia heróica, por Mário da Gama Kury, que me apresenta ao Agamêmnon, de Ésquilo, em versos que honram o intérprete brasileiro da tragédia universal. Sangue e ódio pedem contraveneno, que encontro passeando a dez horas nesse Noturno da Lapa de Luís Martins, tão vivo de suas vivências pessoais e dos eflúvios estranhos que emanam de cafés, pensões e cabarés de há 30 anos. As­sisto à briga da turma de amigos de Luís com o leão de chácara, por causa de uma despesa de 90 mil-réis sem fundos para cobertura; briga depois da qual o mes­mo Luís tira do bolso dois contos e propõe uma roda­da de uísque (nem ele mes­mo sabe por que deixara a briga ir parar na Polícia; coisas da velha Lapa).

E sendo beberetes o assunto, o papel é respaldar as libações com algo sólido, pelo que aparece Guilherme Figueiredo tecendo varia­ções sobre feijoada, levan­tando o .cardápio carioca e oferecendo pastel de passa­rinho, deleite cruel, mas, que mesa não é posta sob uma toalha de crueldades? O seu Comidas, meu santo ensina e sobretudo diverte. Mas, adiante: Waldemar de Almeida Barbosa me conta A verdade sobre Tiradentes, deitando a ripa em Joaquim Norberto, e para distrair lembra Dores do Indaiá do passado, evocações munici­pais, não tanto do passado, pois entre elas surge a buritisal figura de meu com­padre Emílio, poeta, Moura.

E que mina, esse Pano­rama da música popular brasileira, de Ary Vasconcelos: percorrendo-o, torno-me milionário de dados so­bre o tema vastíssimo, pois Ary recolheu, selecionou, ordenou e informou tudo: compositores, letristas, can­tores, instrumentistas, con­juntos, orquestras, discos: um mundo que canta e que samba.

Espraio o meu feriado pe­la sutil ciência literária de A chave e a máscara, de Augusto Meyer (proponho o slogan: “Se é Meyer, é bom”), desde o solilóquio de Hamlet à evocação de Virginia Woolf; e com Paulo Rónai vou aprendendo peraltices de lingualúmina, bolak, novial, chabé aban, spokil e não sei quantas línguas artificiais propostas para acabar com a confusão de línguas no planeta, e que tem conseguido aumentar razoavelmente essa confu­são. Ainda bem que do caos salta um livro delicioso co­mo Homens contra Babel, escrito em vernáculo.

Mas os feriados são ape­nas três, pena é que não saia uma lei estendendo-os de janeiro a janeiro, para que tantos livros de grato manuseio tenham todos sua hora, ai! e nem sequer sou leitor corrido, mas saltador, e nem pude nomear todos os volumes que me tentam…


Publicado no jornal Correio da Manhã, em 4 de novembro de 1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , ,