1º Caderno, Imagens em casa
Leituras feriadas
C.D.A
Sábado, domingo e segunda-feira o Brasil não funcionou, e todos aprovaram o desligamento da corrente. Quem tem carro se mandou pelas estradas, em demanda de um ponto mais cômodo para não fazer nada; quem não tem, pegou o trem, que ainda presta serviço. E houve os que se deixaram ficar em casa, sábios dos sábios, que não se dão ao trabalho de procurar repouso fora de si mesmos.
O cronista foi destes últimos, mas aparentemente, pois na realidade se virou e viajou mais do que viajante de fim de semana. Bastou reparar na pilha de livros sobre a mesa, mandados por mãos amigas, livros a provocá-lo com suas capas brilhantes, seus títulos prometedores, seus autores acreditados na invenção de histórias e ideias, e vou te contar: os circuitos mais variados se abriram nos diferentes caminhos da imaginação.
Numa câmara gótica e numa adega de Leipzig, fora outros sítios mais ou menos misteriosos, assisti ao jogo de perde-ganha do dr. Fausto com o Diabo na limpa tradução que Antenor Nascentes e José Júlio F. de Sousa fizeram do drama de Goethe; e eis-me levado a jato à Grécia heróica, por Mário da Gama Kury, que me apresenta ao Agamêmnon, de Ésquilo, em versos que honram o intérprete brasileiro da tragédia universal. Sangue e ódio pedem contraveneno, que encontro passeando a dez horas nesse Noturno da Lapa de Luís Martins, tão vivo de suas vivências pessoais e dos eflúvios estranhos que emanam de cafés, pensões e cabarés de há 30 anos. Assisto à briga da turma de amigos de Luís com o leão de chácara, por causa de uma despesa de 90 mil-réis sem fundos para cobertura; briga depois da qual o mesmo Luís tira do bolso dois contos e propõe uma rodada de uísque (nem ele mesmo sabe por que deixara a briga ir parar na Polícia; coisas da velha Lapa).
E sendo beberetes o assunto, o papel é respaldar as libações com algo sólido, pelo que aparece Guilherme Figueiredo tecendo variações sobre feijoada, levantando o .cardápio carioca e oferecendo pastel de passarinho, deleite cruel, mas, que mesa não é posta sob uma toalha de crueldades? O seu Comidas, meu santo ensina e sobretudo diverte. Mas, adiante: Waldemar de Almeida Barbosa me conta A verdade sobre Tiradentes, deitando a ripa em Joaquim Norberto, e para distrair lembra Dores do Indaiá do passado, evocações municipais, não tanto do passado, pois entre elas surge a buritisal figura de meu compadre Emílio, poeta, Moura.
E que mina, esse Panorama da música popular brasileira, de Ary Vasconcelos: percorrendo-o, torno-me milionário de dados sobre o tema vastíssimo, pois Ary recolheu, selecionou, ordenou e informou tudo: compositores, letristas, cantores, instrumentistas, conjuntos, orquestras, discos: um mundo que canta e que samba.
Espraio o meu feriado pela sutil ciência literária de A chave e a máscara, de Augusto Meyer (proponho o slogan: “Se é Meyer, é bom”), desde o solilóquio de Hamlet à evocação de Virginia Woolf; e com Paulo Rónai vou aprendendo peraltices de lingualúmina, bolak, novial, chabé aban, spokil e não sei quantas línguas artificiais propostas para acabar com a confusão de línguas no planeta, e que tem conseguido aumentar razoavelmente essa confusão. Ainda bem que do caos salta um livro delicioso como Homens contra Babel, escrito em vernáculo.
Mas os feriados são apenas três, pena é que não saia uma lei estendendo-os de janeiro a janeiro, para que tantos livros de grato manuseio tenham todos sua hora, ai! e nem sequer sou leitor corrido, mas saltador, e nem pude nomear todos os volumes que me tentam…
…
Publicado no jornal Correio da Manhã, em 4 de novembro de 1964