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Lavoro – por Rachel de Queiroz

Arquivo de Rachel de Queiroz / Acervo IMS

Arquivo de Rachel de Queiroz / Acervo IMS

Lavoro
Rachel de Queiroz

Imagino que tal como a natureza con­dicionou a abelha a fazer sempre com impecável perfeição o rendado minucioso dos favos, condicionou igualmente a mu­lher para os trabalhos manuais miúdos e delicados como o bordado, os trançados, o labirinto, o crivo, a renda, a tapeçaria, os tecidos, o crochê, o tricô — todos esses misteres tradicionais que no Nordeste se chamavam antigamente e indistintamen­te de lavoro. E imagino também que o trabalho manual delicado, monótono, con­sumidor de horas infindáveis é uma es­pécie de válvula de compensação para a mulher, a satisfação de um seu instinto profundo, assim como a caça, a velocida­de, a aventura e a briga o são para o seu companheiro masculino.

Não incluo aliás nesse tradicional tra­balho feminino a arrumação e a limpeza da casa — o ménage — como se dizia no colégio. Varrer casa, fazer camas, lavar banheiros, arear panelas, talheres e lou­ça, lavar e passar roupa são obrigações pe­nosas, cansativas, desagradáveis, que não distraem nem descansam o espírito e an­tes sempre geram um inevitável ressenti­mento. Ninguém encontrará uma mulher a escaldar caçarolas engorduradas sem lhe notar nos olhos uma expressão ressen­tida, contra a vida que a obriga a tal ta­refa. Cozinhar, porém, já é outra coisa; a cozinha é, francamente, uma atividade criadora, e há uma satisfação artística em produzir um prato bom, bonito, saboroso. E cozinhar também satisfaz outro profun­do instinto feminino que é alimentar os seus, vê-los de paladar contente e estô­mago cheio. Até gordos!

Olhai para uma mulher que borda. Sua atitude é serena, poder-se-ia dizer hierática, quase ritual. Enfia e puxa a agulha sempre com os mesmos movimen­tos da mão e do braço, pausadamente, num ritmo certo, como uma espécie de balé manual. De vez em quando para, alisa al­guns pontos com a unha, afasta o bordado dos olhos para melhor contemplar o que fez, com uma ruga de concentração na testa, que acaba por se resolver num sor­riso satisfeito.

Já a mulher que dá conta do ménage tem o aspecto esfogueado, o seu método de trabalho é desordenado, espasmódico, intercalado de inspirações e expirações fundas, esfrega freneticamente, obstina-se furiosa contra uma mancha mais re­nitente, abre demais a torneira, salpica-se; não tem ritmo, nem mesmo uma ordem seguida para executar cada tarefa. Tan­to que nas revistas de assuntos femini­nos um dos tópicos mais comuns são os conselhos sobre o modo menos cansativo de realizar os trabalhos de limpeza e arru­mação. Duvido que uma só entre mil mu­lheres acabe de arrumar a cozinha sem um suspiro de ressentimento e sem um pensamento amargo sobre quanto é en­fadonha, sem compensação e cansativa a obrigação diária de uma dona de casa. Nunca se viu uma mulher dizer ao mari­do: “Estou farta de bordar, não aguento mais, ou se encontra uma bordadeira nova ou eu acabo numa casa de saúde!” Mas qual será o marido que não ouviu da mu­lher queixa formulada dessa ou de ma­neira semelhante, sobre a sua exaustão com o trabalho doméstico?

Dizem os estudiosos do assunto que é impressionante a porcentagem de mulhe­res americanas que frequentam os psica­nalistas, procurando ajustamento psíqui­co e emocional. Suponho que a razão prin­cipal disso é a imposição do trabalho do­méstico à maioria das donas de casa ame­ricanas, sempre desagradável e pesado, apesar de todos os gadgets elétricos que o facilitam. E, de outro lado, o abandono, por essa mesma mulher americana, da­queles seculares lavoros da tradição fe­minina — o bordado a renda, o crochê, a tapeçaria, a costura à mão. A produção industrial dos artigos de vestuário e cama e mesa bonitos, sólidos, baratos, desinte­ressou as donas de casa da sua confecção caseira. Isso aliás não é prerrogativa das mulheres dos Estados Unidos; nas nossas cidades a roupa feita se universaliza e as moças não aprendem mais a bordar nem a costurar. Aquele departamento tradi­cional dos antigos colégios de meninas — a sala de costura — desapareceu do currí­culo dos modernos educandários. As moças estudam economia, línguas estrangei­ras, ciências — se bacharelam nas mais diferentes especialidades, e nem uma de­las sabe enfiar uma agulha. Certa vez, numa festa de mocinhas, fiz um teste: entre dezessete meninas de entre quinze e vinte anos, só duas eram capazes de usar um dedal! E assim mesmo só para pregar botões. (Mas já há muita máqui­na de costura que prega botões…)

Será por isso, por falta de uma ocupa­ção sedentária, minuciosa, feminina, que as mulheres da cidade grande, perdida a tradição do lavoro, procuram outras atividades semelhantes, como hobby, dizem, cerâmica, encadernação, arranjos florais, pintura em fazenda? Será uma maneira de procurar o equilíbrio perdido, uma com­pensação para a desfeminização da vida da mulher moderna. Foi a minha geração, ou a que nos antecedeu, que se rebelou contra a opressão feminina; e assim é comum, entre as mulheres da minha ida­de, mostrar grande desprezo por esses sím­bolos da escravidão feminina, do gineceu, do harém, da clausura dos conventos. Po­rém as mais jovens, as que não se edu­caram em colégio de freiras, e que já não se sentem na obrigação de ser modernas e feministas (repararam como a palavra feminista quase que desapareceu?), as funcionárias, as exaustas mulheres de ne­gócio, as profissionais, as médicas, as ad­vogadas e engenheiras, olham com nostal­gia e curiosa sedução para alguma ana­crônica companheira que ainda borda as camisinhas dos seus bebês e faz os seus sapatinhos de lã.

Eu de mim, confesso que sou dessas anacrônicas; encontro no lavoro femini­no um encanto, uma compensação, uma fonte de tranquilidade que nada mais me dá. Tiro uma espécie de equilíbrio do uso alternado do jornalismo e do crochê, lite­ratura e bordado a mão, política e cozi­nha. Nas horas de crise, quando se varam noites inteiras em vigília cívica, junto ao telefone e ao rádio, esperando o estado de sítio, a proclamação dos generais, a prisão do líder, não há como um bom tricô para acalmar os nervos enquanto se espera, ou para ritmar a voz dos locuto­res, enquanto se escuta.

Aliás há um símbolo histórico e terrí­vel dessa dupla necessidade de ocupação da natureza feminina: aquelas viragos do tempo da Revolução Francesa que faziam freneticamente tricô enquanto acompa­nhavam os debates da Assembleia Nacio­nal ou quando assistiam ao rolar das ca­beças cortadas pela guilhotina…

Publicado na revista O cruzeiro, em 18.04.1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , ,