Você está aqui:   Home  /  Blog  /  Janela mágica – por Carlos Drummond de Andrade

Janela mágica – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 9.8.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 9.8.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens de um livro
Janela mágica
C.D.A

Por uma feliz circunstância, foi-me dado ler, ainda em preparativos tipográficos, o próximo livro de Cecília Meireles – para variar, livro de crônicas, só conhecidas de uma especial audiência de rádio.

Nessas páginas, a autora de Mar absoluto oferece uma vista nostálgica da infância a prolongar-se pela vida a fora. Hoje é ontem, e ontem ilumina, transfigura hoje. Há felicidades certas, que podem ser fruídas simplesmente se nos debruçarmos à janela. O pombo branco pousa no grande ovo de louça azul de um chalé; quando o céu fica da mesma cor do ovo de louça, a ave pousa no ar.

Assim, também, as borboletas que voam duas a duas são – ah, como não tínhamos reparado nisto! – uma só borboleta, refletida “no espelho do ar”. Chama-se a este exercício de visão: “arte de ser feliz”.

Conta a cronista que alguém lhe disse: “É preciso aprender a olhar, para poder ver as coisas que aparentemente não existem”. Ora, Cecília é exímia professora de ver, e se não pode ir a ponto de inocular em nós o dom da poesia, sabe como ninguém o segredo de fazer-nos enxergar, sentir, transformar e amar as coisas através de sua ótica de poeta.

Há uma graça fluida nos comentários que ela vai tecendo à margem da confusão, dos tiques, dos equívocos, dos absurdos da vida cotidiana. Em vez de censura, o sorriso reticente, mas suave, de ironia sem amargor. Sorriso de pena pelos que não sabem ver e conviver, e perturbam a vida geral.

O caso do cachorrinho tão engraçadinho que acabou se tornando insuportável (por culpa dos donos) e foi passado adiante; os falsos presentes de Natal que nos sentimos obrigados a dar uns aos outros, e que são afinal apenas caixas e papéis de embrulhos, ricamente decorados; as superexcelências da caneta que pensa, apregoadas pela retórica do camelô; o encanto dos mentirosos e a antipatia dos posudos – todas essas anotações do dia a dia são comunicadas com uma leveza de toque, um humor compassivo que constituem qualidades patenteadas da cronista. Dir-se-ia que um ente sutil, habitando entre a nuvem e o sonho, houvesse condescendido em baixar para o contato com as miúdas realidades urbanas. Seu pasmo jamais se converteria em condenação; e até, para alegria nossa, ele semeia no exílio os tesouros imponderáveis de seu reino – e então aprendemos como eram as coisas amáveis; o que pode haver dentro de um velho palácio abandonado, onde se come o jantar invisível; aquilo que torna os dias perfeitos e que não é nada de extraordinário, pois consiste apenas em tudo estar certo e no seu lugar, cumprindo o seu destino.

Por tudo isto, são crônicas muito de ler e guardar, estas transmitidas pela Rádio Roquette Pinto, e bem andou quem decidiu reuni-las em livro para que não se perdessem no ar, como aquele pombo pousado no azul e aquela borboleta dupla que Cecília Meireles soube ver de sua janela mágica.


Publicado no jornal Correio da Manhã, em 9 de agosto de 1964 / Biblioteca Nacional

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , ,