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Hora de provar – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 04.04.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 04.04.1964 / Biblioteca Nacional

 

Hora de provar

C.D.A.

 

O maior erro de um Presidente da República, em nosso sistema de governo, está em considerar-se dono do país e de seus habitantes. Esquece-se de que é um servidor – um servente, que ajuda no trabalho – como outros, e até mais tolhido e desamparado do que os outros, em seu período limitado de exercício e na imensidão de obrigações que deveriam assustá-lo em lugar de enchê-lo de arrogância. É preciso muita lucidez, muita polícia íntima, para que o presidente se ponha no seu lugar, aparentemente mais alto de todos e, no sentido moral, tão frágil e escravizado à lei quanto o de um mata-mosquito.

Evidentemente faltavam ao sr. João Goulart qualidades primeiras para investidura tão delicada – mas isso hoje em dia quase não se exige mais de candidatos. Aos trancos e barrancos poderia chegar ao fim do período, e teríamos suportado mais um governinho ruim, nós que já suportamos tantos. Mas ele chegou à perfeição de fazer um não-governo, irresponsável e absurdo, de que o bom-senso, a ordem intelectual e a ordem física se tornaram ausentes. Fez tudo que era possível para não obter as reformas que preconizava e que ele mesmo não sabia quais fossem até o momento em que seus assessores lhe ministraram os figurinos mal recortados. Reivindicou posições democráticas através de atitudes antidemocráticas nas quais as palavras traíam o avesso do que significavam. Ligando-se a extremistas, fez sem arte um jogo perigoso, de êxito impossível. E como ficou a vida, em redor? Ao acordar, as pessoas indagavam, inquietas, se naquele dia lhes seria permitido trabalhar; se disporiam de condução, alimento, segurança; não podiam conceber por que, para se instituírem novas condições de justiça social, era necessário acabar com o pacto de convivência pacífica, vigente em qualquer coletividade mais ou menos organizada, e fazer sofrer a todos. Deu no que deu.

É com tristeza misturada a horror que, ao longo da vida, tenho presenciado generais depondo presidentes, por piores que estes fossem. Será que jamais aprenderemos a existir politicamente? Não haverá jeito para o Brasil? Mas no caso do sr. Goulart a verdade é que ele pediu, reclamou, impôs sua própria deposição. Que fazer quando o servidor-presidente se torna inimigo maior da tranquilidade? Esperar que ele liquide com a ordem legal, para depois processá-lo segundo os ritos, julgando-o pelo Supremo Tribunal ou pelo Senado? Que Senado, que Tribunal existiriam a essa altura? Quem souber de outra solução para o caso, indique-a.

Os governadores que, ao lado do poder bélico, encarnaram a resistência ao caos e limparam a área do Executivo, precisam revestir-se de humildade e desprendimento na situação nova que se abre. Nenhum problema foi resolvido com a saída de um homem; apenas se evitou a ocorrência de outro problema ainda mais terrível do que os atuais, nutridos de inflação e desajustamento social. É necessário que o Congresso se mostre capaz de eleger presidente alguém realmente qualificado para dissipar ressentimentos populares, inspirar confiança, botar um mínimo de ordem nas coisas, garantir eleições decentes. E não apenas alguém que tape um buraco. Enquanto isso, é hora de provar que reformas democráticas substanciais podem ser feitas – fazendo. Se o Congresso não entender assim, e abismar-se em perplexidades ou contemporizar, não terá perdão. E voltaríamos a isso que foi varrido nos últimos dias.

 

Publicado no jornal Correio da Manhã em 04.04.1964 / Acervo Biblioteca Nacional.