Você está aqui:   Home  /  Blog  /  Hélio Oiticica e a ditadura militar no Brasil – por Michael Asbury

Hélio Oiticica e a ditadura militar no Brasil – por Michael Asbury

Que Hélio Oiticica conclamou ativamente um boicote dos artistas à Bienal de São Paulo de 1969 em oposição à censura e à repressão instauradas pelo regime militar no Brasil é um fato histórico inegável.1 No entanto, sua visão política vai muito além  da mera oposição à ditadura.

Ao chegarmos aos 50 anos do golpe de Estado no Brasil, testemunhamos uma série de incidentes que nos convidam a pensar na relação de Oiticica tanto com aquele momento histórico quanto com os debates da atualidade. Nesse sentido, seu famoso lema “Seja marginal, seja herói” ainda possui muito de sua força original se pensarmos nas recentes apologias à violência dos autodenominados justiceiros, como o slogan “Adote um bandido”, que foi ampla e vergonhosamente difundido pela grande imprensa brasileira.

Hélio Oiticica no seu estúdio com Bólides e Parangolés, Rio de Janeiro, 1965

Hélio Oiticica no seu estúdio com Bólides e Parangolés, Rio de Janeiro, 1965

Oiticica sem dúvida jogava com a ambivalência da palavra “marginal”: um termo que define tanto o indivíduo fora da lei, os setores excluídos da sociedade e, pode-se presumir, a consciência de si mesmo como artista latino-americano. Em outras palavras, o artista propunha um espaço de relação, um fato que a dicotomia proposta pelo slogan recente, que sugere que você ou toma partido do linchamento ou adota um infrator, procura ativamente negar. Essa retórica expressa uma separação irrevogável e, ao fazê-lo, relembra preocupantemente o infame refrão dos militares: “Brasil: ame-o ou deixe-o”.

Muito do que foi publicado sobre Oiticica fora (e às vezes dentro) do Brasil nos últimos anos faz questão de reforçar o fato de que a Tropicália, o “movimento”, apropriou-se do nome da instalação homônima do artista, que ocorreu às vésperas do endurecimento do regime militar, marcado pela decretação do AI-5, em dezembro de 1968. A perseguição a Caetano Veloso e Gilberto Gil pelo regime também está relacionada às práticas de Oiticica, uma vez que a prisão e o posterior exílio dos dois, segundo o próprio Caetano, foram consequência da exibição da bandeira “Seja marginal, seja herói” durante uma apresentação deles.2

Seja marginal, seja herói

Seja marginal, seja herói

Contrariamente a essas aproximações, contudo, eu afirmo que ver Oiticica apenas como um artista que desafiou o regime militar não revela o verdadeiro significado da conjunção da sua ética política e estética. Evidentemente, Oiticica denunciava o regime – como poderia ser diferente? –, mas colocá-lo no simples antagonismo entre “a favor ou contra” obscurece o fato de que ele estava engajado em transformar o modo como entendemos arte, ao trazer à luz problemas que afetam a sociedade brasileira até hoje. Se esses problemas continuam ou foram exacerbados a partir dos anos 1960, apesar do fim da ditadura nos anos 1980 e os subsequentes governos “democráticos” de distintas afiliações no espectro político, a recepção de seu trabalho como artista, na minha opinião, ainda não é considerada satisfatória.

O fato de que a Tropicália pode ser razoavelmente descrita como um “movimento” da música popular brasileira não significa necessariamente que, no campo da arte, houvesse uma coerência equivalente de propósitos, sem falar de estética. O ensaio de Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade”, publicado em 1967, no catálogo da exposição Nova objetividade brasileira, onde sua instalação Tropicália foi apresentada pela primeira vez, no Museu de Arte Moderna do Rio, é um testemunho de sua posição favorável tanto a uma prática artística de natureza mais pluralista quanto à política de resistência. Sua insistência numa posição ética que surgisse dessa prática mais pluralista ligada à resistência, em oposição a uma proposta panfletária direta e declarada, sem falar na resistência armada, revela muito da diversidade de práticas e da práxis política adotada pelos artistas naquele momento. Oiticica estava, no fundo, tentando encontrar coerência em um momento de desarranjos e divergências políticas e estéticas.

Instalação "Tropicália", 1967

Instalação “Tropicália”, 1967

De fato, há muito a ser aprendido sobre sua posição nesses tempos de divisões segundo quadros ideológicos ortodoxos, onde se espera uma tomada de posição sem reflexão ou, como é cada vez mais frequente, ao se clicar em um botão, sobre situações de conflito e protesto, seja no Brasil, na Venezuela, nos EUA ou no leste europeu. Tropicália, nesse sentido, produtivamente, estrategicamente e, sobretudo, intelectualmente, articulava uma posição entre facções aparentemente irreconciliáveis. Era, em outras palavras, não uma posição de síntese, como muitas vezes se diz, no sentido das fontes estéticas, mas no nível político, muito pelo contrário, de contínua reflexão sobre possíveis relações no interior das possibilidades de resistência. Essa posição, no caso de Oiticica, surge a partir de um processo pessoal de articulação com o abismo sociorracial brasileiro, que revelou as contradições intrínsecas das próprias reivindicações de identidade nacional feitas pelos extremos políticos, que, no limite, viriam a ser antagonistas do “movimento” com o qual a instalação Tropicália se tornou associada.

É difícil, em se tratando de Oiticica, fazer afirmações definitivas. Em vez disso, é necessário falar de processos e desenvolvimentos, de releituras e revisitações. Esse foi, aliás, o método adotado no artigo que escrevi em 2006, intitulado “O Hélio não tinha ginga”, que, até onde sei, é sempre citado por outros autores como uma crítica à habilidade de Hélio como dançarino. Minha crítica, se é que havia alguma, era bastante simples, poderia ser resumida como um alerta contra o perigo de se considerar Hélio, o artista branco de classe média, como uma espécie de Tarzan que se sentia mais em casa na favela do que os próprios moradores do morro.3

O enfoque em sua habilidade de dançarino enfraquece, portanto, o ponto crucial sobre a relevância daquela experiência para sua prática artística, seu processo intelectual ou mesmo (no contexto deste ensaio) sua posição política diante do regime militar.

Miro da Mangueira com Parangolé

Miro da Mangueira com Parangolé

Por trás desse simples alerta, há um aspecto mais complexo relativo à história da arte, que nos diz, no caso de Oiticica, que é problemático discutir uma única obra ou série sem considerar a natureza reavaliadora inerente de sua prática criativa como um todo. Boa parte do artigo, portanto, retoma o advento do Parangolé, a série de obras mais associada ao carnaval, ao samba e, por extensão, à própria Mangueira.

O artigo propunha um estudo historiográfico dos escritos de Oiticica no intuito de desfazer a percepção de que sua obra era puramente produto do encontro do artista com a cultura popular. Uma compreensão assim limitadora sugere implicitamente que ela representaria uma ruptura com sua prática anterior. Em vez disso, defendo que seu envolvimento com a cultura popular brasileira era como um desenvolvimento de sua trajetória criativa e intelectual totalmente coerente com sua experiência dentro das vanguardas neoconstrutivistas brasileiras do final dos anos 1950: justamente porque essas experiências seriam continuamente retomadas pelo artista ao longo de toda sua vida.

O artigo questionava uma abordagem metodológica defendida pela crítica pós-colonial simplista, dominante entre as narrativas da dita arte “periférica”. Segundo essa abordagem, a ênfase na relação de Oiticica com a cultura popular brasileira me parecia consolidar o próprio discurso que ele proclamava querer derrubar. Em vez de avaliar a obra como arte, esses discursos tendem a alienar o artista numa genealogia “paralela” da história da arte, um modernismo tropical alternativo, que pode, por sua vez, ser (como de fato foi) inserido nas grandes antologias da arte do século XX sem maiores descontinuidades dentro da narrativa canônica euro-americana. Esses discursos, em última análise, mesmo implicitamente, sugerem uma posição na história da arte de separação ao invés de relação. Propor uma relação com o cânone já é criar uma ruptura dentro dele, e era justamente isso que eu tentava fazer.

No esquema com o qual tentei romper, o Parangolé é compreendido de forma reducionista como uma proposta afinada com o discurso da ampliação do campo da cultura erudita, que se afasta da percepção da autonomia da arte, um fato enfatizado pelo sempre relembrado evento da inauguração dos Parangolés, em 1965, quando Oiticica e amigos da favela, vestidos com parangolés e dançando samba, foram expulsos do Museu de Arte Moderna do Rio. Se Oiticica realçava o apartheid sociorracial inerente que existe no Brasil, a inauguração do Parangolé poderia ser considerada uma forma de protorrolezinho – a recente onda entre jovens das favelas e periferias que organizam flash mobs em shopping centers e locais frequentados pela classe média, de onde são expulsos à força, revelando, portanto, a violência implícita das estruturas sociais dominantes. O Parangolé, e essa era minha principal tese naquele artigo, não se restringe apenas ao escopo sociorracial. Ele age dentro do quadro das questões fundamentais sobre como a arte é compreendida. É, portanto, uma contribuição para esse campo, que deveria ser discutida não apenas dentro das especificidades do contexto social e político regional, mas nos termos das práticas radicais desenvolvidas contemporaneamente na Europa, nos EUA, no Japão, entre outros países. Como a própria retórica pós-colonial, ao celebrar acriticamente a relação que o Parangolé estabelece com a cultura popular brasileira, essas abordagens tanto enquadram quanto restringem seu significado dentro do contexto regional. Por um lado, elas transformam essas práticas em entidades inofensivas que jamais romperão as premissas legitimadoras das genealogias pós-greenberguianas, mas, por outro, implícita ou convenientemente disfarçam o fato de que os problemas sociais e étnicos que a obra destacava ainda persistem hoje em dia. Se voltarmos aos escritos de Oiticica durante os anos 1960, encontraremos tanto uma crítica das desigualdades vigentes na sociedade brasileira como também uma contínua relação que o artista estabelece entre artistas no Brasil e em outros países. Essas duas linhas do pensamento de Oiticica não podem ser consideradas investigações separadas.

Parangolé

Parangolé

Oiticica estava claramente diferenciando o Parangolé dos artefatos da cultura popular precisamente por isso. Para ele, aquilo não representava a cultura popular, e sim criava um espaço de relação com ela, como de fato criou com outras práticas experimentais de outros contextos. Dizer que Hélio não sabia dançar era, portanto, um modo provocativo de afirmar que ele não representava o samba. Felizmente, o samba é perfeitamente capaz de se representar a si mesmo. A relação entre o Parangolé e o samba, talvez seja o caso de dizer, é também fundamentalmente distinta do atual emprego do termo relacional, que tende a considerar a arte sob tal denominação predominantemente como uma forma de representação da alteridade, um modo de trazê-la para o museu, a bienal ou a galeria.

A questão da representação é significativa, portanto, porque ainda há uma necessidade desesperada dos setores marginalizados da sociedade de terem o direito e o espaço para a autorrepresentação. Em outras palavras, enquanto ainda for necessário um artista para tornar visíveis os desejos desses setores, o problema persistirá. O Parangolé não foi, nesse sentido, um precursor do rolezinho. Como Oiticica declarou no catálogo da exposição Information, no MoMA, em 1970: “Não estou aqui para representar o Brasil”. Essa declaração é geralmente entendida como uma recusa a qualquer associação com o regime militar no Brasil na época. Claro que isso também é verdade, mas a frase é mais profunda do que apenas isso. Ela sugere que Oiticica não queria representar, ponto. Seu projeto – os Ninhos (expostos na ocasião) e, por extensão, a proposta político-estética do Barracão, da qual os Ninhos derivavam – era estabelecer condições do ser, não importando o lugar, seja social ou geográfico. O Barracão é a afirmação política mais profunda de Oiticica, sua resposta às ideologias de todo espectro. Era um espaço de relação, de comunicação não hierárquica que se valia de sua experiência comunitária na favela, em outras palavras, de sua própria vivência. O Barracão é, portanto, uma abstração par excellence, não um modelo arquitetônico, uma representação de um espaço típico da favela, mas propõe uma práxis política, conferindo poder aos participantes pelo estabelecimento de comunidades e processos de relação. É uma reavaliação autoconsciente da síntese imagética proposta em Tropicália.

Lembramos aqui de uma anedota que Hélio costumava contar sobre seu avô. Quando chamado para ser jurado em um processo criminal, José Oiticica disse logo de início que não julgaria o acusado, fossem quais fossem as evidências. Para Hélio, essa parecia ser uma posição problemática, que ele admitia ter tido grande impacto em sua visão de mundo. Se um advogado representa um cliente ou o Estado, não existe nenhuma posição disponível para a articulação de qualquer relação. Pede-se que o júri tome partido de um ou de outro lado. Podemos assim entender a frase do avô de Hélio como uma recusa a revelar posições, uma vez que adotar uma posição é estagnar, é defender um juízo definitivo. Como seu avô, Hélio se tornou um revolucionário, tanto na sua posição como ser sociopolítico quanto como artista. Seu Bólide Homenagem a cara de cavalo é um bom exemplo de como essas duas posições se fundem pela distinção entre representação e relação. A imagem fotográfica, multiplicada dentro da caixa, não é uma representação do bandido assassinado, mas uma apropriação, trata-se de um ready-made. Em outras palavras, é uma imagem tirada de seu contexto original, em si mesma uma representação. Oiticica está efetivamente transformando as possibilidades de relação que a imagem midiática do jornal foi capaz de fornecer. Está tornando abstrata a estrutura em que a imagem estava representada para oferecer uma nova forma de relação entre o observador e a imagem. Essa estratégia de questionamento da própria estrutura pela qual a imagem é apresentada remonta ao neoconcretismo, por exemplo. O mesmo poderia ser dito a respeito do Parangolé.

Hélio Oiticica com Bólide "Homenagem a Cara de Cavalo"

Hélio Oiticica com Bólide “Homenagem a Cara de Cavalo”

Em 1964, quando ocorrem duas catástrofes na vida do artista, o golpe militar e a morte do pai, Oiticica experimentou possivelmente o ano mais libertador de sua vida. Sua imersão na cultura da Mangueira, que também aconteceu naquele ano, foi um momento catártico para ele, política, sexual e artisticamente. Ver isso como contraditório é deixar de entender o impulso dialógico de sua ética e de sua estética.

Anarquista, nietzschiano, chame como quiser, a relação de Oiticica com a ditadura militar no Brasil, como sua própria arte, foi de contínua e produtiva reavaliação. Entender obras – a homenagem a Cara de Cavalo e os Parangolés – e ideias – o Barracão – como formas de representação seria colocar sua obra como expressão da repressão e da vitimização. Nada poderia estar mais longe da verdade.

1 Os arquivos de Guy Brett sobre o artista no período londrino e posteriores à exposição na Whitechapel Gallery, em 1969, contêm diversos materiais relacionados a isso.

2 Caetano faz essa afirmação em seu livro autobiográfico Verdade tropical, além de mencioná-la em seu depoimento para o catálogo Oiticica in London, organizado por Guy Brett e Luciano Figueiredo, publicado pela Tate, em 2007.

3 BRAGA, P. (org.) Fios soltos do experimental: a arte de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, 2008, pp. 27-65.

Tradução de Alexandre Barbosa de Souza.

Michael Asbury é integrante do Centro de Pesquisa Transnational Art identity and Nation da University of the Arts London e referência, como teórico e curador, em arte brasileira moderna e contemporânea.

  2014  /  Blog  /  Última atualização abril 23, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , , , , ,