Fantasmas
Paulo Mendes Campos
A história é um pesadelo de que me esforço para despertar, diz um personagem de James Joyce. No mundo nosso o próprio presente se faz pesadelo. Científico em sua aspiração, pondo na técnica a sua mais extrema confiança, dividido em dois campos, militarizado na área estatal e dos grandes interesses econômicos, eis o admirável mundo novo — as coisas aberrantes estão nos jornais que lemos pela manhã e à tarde. A ciência, liberando fantasmas, tornou-se o pasto mais fecundo da ficção aterradora. Transformado em fórmula matemática, nós sabemos agora que o Apocalipse de São João é igual à massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz. As advertências dos sábios e as ameaças proféticas falam uma linguagem impressivamente parecida. A contaminação radiativa, diz Schweitzer, resultante de uma explosão nuclear cobriria uma superfície de 45.000 quilômetros quadrados. Alguns acham, diz Bertrand Russell, que a metade da população do mundo sobreviverá, outros que um quarto, outros que nada. No fundo do Velho Testamento ruge Isaías: E eis que tudo será tribulação e trevas, desmaio e angústia. E a solidão exultará e florescerá como a açucena.
O homem se liberta de certos medos e vai criando novos terrores, elimina certos padrões de morte e multiplica outros, abre janelas de ar puro, ao mesmo tempo que descortina inéditas paisagens de violência e horror.
O estrôncio 90 vagueia sobre as nossas cabeças, ameaçando-nos com um poder desconhecido; as explosões nucleares talvez estejam alterando o regime atmosférico como um deus ensandecido; o leite, que deu a Shakespeare a metáfora da bondade humana, pode estropiar os ossos das crianças; o cigarro, de que falavam com romantismo o tango e outros poemas populares, esconde também um monstro, a que deram o nome de carbono 14, exatamente um dos mesmos elementos radiativos lançados à atmosfera pelas experiências nucleares, e age como forte fator cancerígeno; a química farmacêutica gerou os aleijados da talidomida; voando no espaço ou na imaginação dos exaltados, os discos voadores, reais ou não, ameaçam os seres humanos; quanto mais adiantado um país, mais espantoso o consumo de tranquilizantes; admite-se a veracidade da existência dos monstros marinhos; ninguém mais pode negar a existência de um diabo dentro de cada criatura humana; no alto do Himalaia, por sua vez, real ou não, perambula o abominável homem da neve; há algum tempo, até as sacolas de matéria plástica andaram matando por asfixia, a eletricidade estática fazendo com que se colassem facilmente aos rostos das crianças. Como diz o demônio duma peça de Shaw, no tocante às artes da morte o homem ultrapassou a natureza, produzindo por química e mecânica todo o morticínio das pestes e da fome.
Li ainda há pouco uma informação curiosa: um médico francês observou que seus clientes cardíacos mostravam uma tendência a entrar em crise quando seus telefones estavam enguiçados. Notificado da coincidência, um colega seu consulta o fichário e verifica que também uma estranha relação havia entre os seus doentes e o telefone enguiçado. Primeira hipótese: o telefone enguiçado agiria como uma causa psíquica de consequência somática. Como as crises de frequência das crises dos clientes dos dois médicos pareciam coincidir, passaram eles a buscar uma causa que perturbasse simultaneamente os corações e os telefones. Que fator atrapalha o serviço telefônico em certas épocas? A companhia telefônica francesa deu a resposta imediata: tempestades magnéticas, ou seja, determinados fenômenos nucleares do Sol vão influenciar corações que se encontram a 150 milhões de quilômetros.
Quando eu era menino li umas três ou quatro vêzes um excelente livro de science fiction, Maravilhas do Ano 2000, de Emílio Salgari. Um cientista se faz congelar, na companhia de um milionário entediado, despertando ambos nas vizinhanças do terceiro milênio: depois de várias aventuras no futuro, eles morrem (de morte prematura, sem dúvida) por não estarem habituados à eletricidade estática da atmosfera.
Não estamos nós congelados; mas o nosso organismo e a nossa mente estarão em compasso com a mágica científica de nosso tempo? Estamos assimilando normalmente os fantasmas de nossos dias? Ou estamos próximos de uma espetacular intoxicação?
Tive um pequeno sinal disso há uns anos em Londres, onde, a despeito de não me dar bem com essa matéria, usei uma camisa de nylon, e vi com espanto, ao despi-la para dormir, que ela estralava feito máquina eletrostática, arrepiando-me a pele, estufando como um fantasma de fita do Gordo e do Magro, quando eu passava perto dessa peça de vestuário subitamente dotada de malícia. Confesso que, se não tive medo, senti pelo menos uma sensação mais… profunda.
Mas, como é de fato para se ter medo, é melhor brincar, dizendo que podemos acordar uma bela manhã dessas e dar de cara com panelas de pressão voando e apitando descontroladas, mulheres (vai morrer gente no bafa) privadas de repente de suas peças íntimas, besouros gigantescos subindo pelas paredes, monstros inconcebíveis saindo do mar, charutos fazendo explodir os homens gordos que têm o hábito de fumá-los, aviões que decolam sozinhos, a televisão pegando programas de seres desconhecidos, os rádios falando idiomas que os sábios não sabem, macacos surgidos não se imagina como e de onde, invadindo os nossos fortes e belonaves armados de metralhadoras atômicas, e outros milagres mais deste mundo racional, científico e cem por cento técnico.
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Publicado na revista Manchete, em 12 de setembro de 1964.