Em termos de cinema, talvez seja possível dizer que 1964 começou em setembro de 1963, entre o lançamento de Vidas secas, o aparecimento de Revisão crítica do cinema brasileiro e a abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as atividades da indústria cinematográfica.
O filme de Nelson Pereira dos Santos, depois da estreia no Rio no final de agosto, chegava ao sul do país. O livro de Glauber Rocha, nas livrarias desde setembro, continuava a render debates nos jornais e a estimular os debates da CPI da indústria cinematográfica, voltada em grande parte para as observações do último capítulo do livro, Economia e técnica, em que Glauber observa como as leis que regulavam o mercado de cinema, “habilmente, e procurando não ferir os interesses das firmas distribuidoras estrangeiras instaladas no Brasil do mais longínquo município gaúcho à mais remota aldeia do Amazonas, não se concentram nos problemas essenciais”. Nos projetos em discussão no congresso, conclui Glauber, “nada existe que detenha o truste americano. Nada existe que interesse aos independentes”. O importante era criar “um mercado desafogado (…), facilidades de importação de película virgem, facilidades de importação de material técnico moderno”.
O Ministério da Educação Cultura promovia uma Retrospectiva do Cinema Brasileiro. O canto da saudade de Humberto Mauro na sessão de abertura. Para o encerramento, previsto para 16 de abril,Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos. Na Retrospectiva, além dos filmes, um seminário para discutir “as dificuldades de toda ordem que o gênero curta-metragem enfrenta no Brasil, propondo medidas que facilitem o seu desenvolvimento; a abordagem dos problemas econômicos do cinema brasileiro e a focalização dos problemas culturais de nosso cinema, detendo-se na análise da formação da cultura cinematográfica do país e da utilização do cinema na complementação do ensino”.
Mas do mundo cinema o que de verdade ocupava as páginas dos jornais era a presença de Brigitte Bardot, no Rio em viagem de férias com o namorado Bob Zagury e perseguida por fotógrafos e repórteres desde o instante em que desceu do avião:
“O tiro de partida foi a entrada de Bob e BB no carro. Os corredores eram os repórteres e fotógrafos. No instante em que o volks partiu, partiram, também, correndo pela pista os jornalistas. Os jipes e peruas dos jornais já estavam em frente do aeroporto, numa formação semelhante às largadas de Le Mans. E assim começou a caça a Bob e BB. Houve de tudo”, conta Carlos Leonam em sua coluna De homem para homem (Diário de BB, a chegada) na primeira página do Caderno B do Jornal do Brasil.
Na mesma página José Carlos Oliveira comemorava: Viva a mulher nua! “Oba! Chegou a mulher nua! Estas palavras, pronunciadas por um carioca de dentadura postiça e gogó saliente ali num boteco da Avenida Brasil, provocaram grande comoção popular. Os automóveis buzinavam impacientes, os guardas de trânsito que não optaram resfolegavam atrás dos apitos, de todas as janelas aparecia gente e todos só sabiam repetir a terrível pergunta, cheia de esperança: Cadê a mulher nua? Aonde?”.
Conhecida em todo o mundo em especial pelas cenas de nudez em E Deus criou a mulher (Et Dieu… créa la femme, 1956) e em O repouso do guerreiro (Le repos du guerrier,1962), ambos de Roger Vadim, em A verdade (La verité, de Henri Georges Clouzot, 1960) e em Vida privada (Vie privée de Louis Malle, 1962), dois dias depois de chegar ao Rio, Brigitte reunia jornalistas numa entrevista coletiva no Copacabana Palace para dizer que gostaria de “passear tranquila, como uma turista qualquer” e contar que de madrugada mandara, através de Bob, “duas garrafas de cerveja para os jornalistas que passaram a noite de plantão” na avenida Atlântica, em frente ao apartamento de Afraninho Nabuco, onde ela se hospedou.
Nos cinemas, Sean Connery na primeira aventura de James Bond, O satânico Dr. No (Dr. No, de Terence Young, 1962), Paul Newman mais uma vez como o jovem americano rebelde, O indomado (Hud, de Martin Ritt, 1963), Elvis Presley como um lutador de boxe, Talhado para campeão (Kid Galahad, de Phil Karlson (1962), Claudia Cardinale em novo melodrama de Mauro Bolognini, Desejo que atormenta (Senilità, 1962), Sandra Dee e Peter Fonda numa comédia romântica de Hollywood, Artimanhas do amor (Tammy and the Doctor, de Harry Keller, 1963) e, em distribuição de Walt Disney um nova aventura para crianças com um herdeiro da antiga série de Lassie da década de 1950, Nikki, o valente indomável (Nikki, Wild Dog of the North, de Jack Couffer e Don Haldane, 1961).
Em destaque, por razões diferentes, um filme de Hollywood e um filme japonês: Cleópatra (de Joseph L. Mankiewicz, 1963), uma super produção super acidentada – o orçamento inicial de 2 milhões saltou para mais de 40 milhões de dólares. E Harakiri (Seppuku, de Masaki Kobayashi, 1962), recebido com entusiasmo desde sua apresentação em Cannes, no ano anterior, onde recebeu o Prêmio Especial do Júri.
Entre o começo da filmagem, em 1958, e a estreia em 1963, Cleópatra passou por duas direções da Fox com visões bem diferentes: Spyros Skouras, queria uma refilmagem de Cleópatra de 1917, baseado numa peça de Émile Moreau, dirigido por Gordon Edwards e interpretado por Theda Bara. A ideia de refilmagem do roteiro do filme mudo foi abandonada no meio da produção, e foram comprados os direitos do livro The life and times of Cleopatra, de Carlo Mario Franzero.
Pouco depois da retomada do projeto, o diretor Rouben Mamoulian foi substituído por Joseph L. Mankiewicz, que ampliou o roteiro para transformar a produção em um épico de dois filmes de três horas cada. Terminada as filmagens, Darryl F. Zanuck, na direção do estúdio para controlar os gastos, confiscou as cópias de trabalho e cortou duas horas do projeto de Mankiewicz.
A crônica de Claudio Mello e Souza no Jornal do Brasil é um exemplo da boa acolhida do filme de Masaki Koayashi em seu lançamento: “Raramente pode-se dizer que um filme é perfeito. Pois dou este adjetivo a Harakiri, cuja forma e cuja história estão repassados daquela pulsação, daquela humildade dramática que preserva uma obra para a eternidade. E é tão perfeito que o bom gosto não o atrapalha nem lhe diminui o ímpeto demoníaco que o atira para a frente, numa maravilhosa agressão ao nosso bom comportamento estético”. Hélio Pólvora manifestou igual entusiasmo: “Desde já uma das melhores realizações do cinema japonês. O sopro épico que perpassa em Os sete samurais e Sanjuro, de Akira Kurosawa, encontra um equivalente de igual quilate na cena quase final de Harakiri, quando um samurai errante, vingando a memória do filho adotivo, enfrenta, a espada, mais de dez adversários”.
Para adaptar o livro de Yasuhiko Takiguchi, o diretor passou “horas a olhar estátuas em nossas cidades antigas. Quando jovem, estudei arte asiática, em particular a escultura budista. Harakiri foi filmado a partir de meu fascínio pela beleza estilizada de nossas formas tradicionais”.
Na apresentação do filme no Festival de Cannes, comentou ainda como encontrou a solução para filmar uma das cenas de maior impacto, aquela em que o jovem samurai comete harakiri com uma espada de bambu. “Tentei várias abordagens, nenhuma convincente. Lembro de ter passado uma noite bebendo sake e pensando. Dormi cansadíssimo e quando despertei, de repente, vi o que deveria ser feito. Impossível apunhalar-se com uma espada de bambu. Só havia uma maneira: a espada apoiada no tatame, o homem atirava-se sobre ela. A partir daí, tudo foi fácil, filmamos rapidamente. Fiquei muito satisfeito com o resultado da cena e com seu efeito sobre as sequências vizinhas. Este exemplo explica como a mente de um artista trabalha. Criar é um desafio, mas uma operação simples: se o lampejo de uma idéia brilha, tudo se revela como uma epifania. Mas, claro, esse tipo de revelação só acontece depois de muita luta, depois de cuidadosas análises. O esforço, a luta, toda análise e consciência devem então ser esquecidas. Assim que filmagem começa o filme é em grande parte uma projeção da mente do diretor. Trabalha-se então guiado pelo instinto, a sensibilidade passa a ser o único guia que um diretor de cinema obedece ao longo do trabalho”.
Há três anos Harakiri foi refilmado por Takashi Miike (A morte de um samurai / Ichimei, 2011) e sua exibição no Festival de Cannes transformou-se, mais do que num verdadeiro contato com o filme na tela, numa oportunidade de rever na memória, para os que conheciam o trabalho de Kobayashi e do ator Tatsuia Nakadai, as imagens do filme original.
Enquanto isso, então com 67 anos, Humberto Mauro era homenageado pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna com uma retrospectiva no auditório da Maison de France, e havia quase dez anos sem realizar um filme, preparava-se para dirigir A velha a fiar.
* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.