Você está aqui:   Home  /  Blog  /  Do processo de Kafka – por Paulo Mendes Campos

Do processo de Kafka – por Paulo Mendes Campos

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Do processo de Kafka
Paulo Mendes Campos

(José K. está se arrumando, de manhã, quan­do entram em seus aposentos dois investi­gadores: o 1.° investigador investiga a peça vizinha; o 2.° dirige a palavra a José K.)

Inv. — O senhor não tem o direito de sair.

K. — Ah! mas isso é um pouco forte… Antes de tudo, quem são os senhores?

Inv. — Isso não é da sua conta. Estamos aqui para detê-lo.

K. — Me deter? Por quê?

Inv. — Isso não é problema nosso. Fique no seu quarto e aguarde. É o melhor que pode fazer. O processo foi instaurado.

K. — Não entendo ainda… Quem sabe estou sendo vítima de um erro ou objeto de uma grossa brincadeira da parte de meus colegas… Conte logo… a piada já está ficando um pouco chata.

Inv. — O senhor está detido.

K. — Mas por que o senhor veio me prender? Olhe aqui minha carteira de iden­tidade. Pode ver que se trata de um engano. E o senhor queira mostrar-me a ordem de prisão.

Inv. — Parece que o senhor está que­rendo é irritar a gente. Logo nós que somos nesse momento seus melhores amigos.

K. — Ah, essa é boazinha! Olhe aqui a minha identidade.

Inv. — Que é que você quer que a gente faça com ela? Escute: pra nós tanto faz como tanto fez quem é o senhor. É ou não é? Nós somos agentes lá de baixo. Os lá de cima é que sabem tudo a respeito da sua prisão. Não se trata, como se diz, de delito de direito comum. É a lei que manda. Mas os de cima têm de obedecer aos regu­lamentos superiores. É a lei, velho. Não há jeito de engano.

K. — Pois eu não conheço essa lei.

Inv. — Tá aí! Se não conhece, como é que o senhor vai saber que não é culpado?

K. — Eu explico tudo com o seu supe­rior. Quero vê-lo.

Inv. — Isso não é assim, não. Ele é que o convoca quando quiser. Vá para o seu quarto e trate de descansar bastante.

K. — Esses caras vão me fazer faltar ao emprego…

***

Brigadeiro — José K.

K. — Pronto, senhor brigadeiro. Não es­perava por essa, é verdade… Mas, no fundo, não estou muito surpreso.

Brig. — Ah! o senhor diz que não está muito surpreso.

K. — Quero dizer que… vou lhe expli­car… Posso me sentar?

Brig. — Não é de praxe.

K. — O senhor vai entender tudo ime­diatamente: a vida pra mim nunca foi muito fácil. Desse modo, fiquei um pouco imuniza­do (se é que posso falar assim) contra as surpresas. Não dramatizo mais as surpresas… sobretudo esta.

Brig. — Por que “sobretudo esta”?

K. — Me entenda, por favor: não dra­matizo — foi o que eu disse. Pois nem levo a sério. Antes, cheguei a pensar que fosse uma brincadeira, mas já afastei essa ideia…

Brig. (depois de contar os fósforos da caixa) — Certinho.

K. — Mas é claro que devo examinar meu comportamento. Ora, como não acho nada de que me possam acusar… O senhor me desculpe assim se não chego a levar o negócio de um modo bem… grave…

Brig. — O senhor está errado.

K. — Mas tudo isso é secundário. O que me interessa antes de tudo é saber por quem eu sou acusado. O senhor vê: não digo mais do quê me acusam, mas por quem eu… Enfim, qual é a autoridade que dirige este processo. Porque, se eu a conhecesse, talvez pudesse… O senhor está agindo sob as ordens de quem?…

Brig. — Completamente errado. Estou agindo no processo em curso: um papel acessório, para não dizer subalterno. Não sei praticamente nada do processo: nem quem o acusa, nem de que o acusam. E o senhor estará mesmo sendo acusado? O senhor está detido, o que não é a mesma coisa. Isso, sim, é exato. Um fato! Tudo o mais que os investigadores podem lhe falar é conversa mole. Mas não estou aqui para responder a suas perguntas. O senhor é que tem de res­ponder quando for perguntado. Nunca antes. Como não parece um mau sujeito, vou lhe dar um conselho: pense menos na gente e um pouco mais em si mesmo. E não fique aí fazendo muito alarde de sua inocência. Isso irá comprometer a boa impressão que o senhor possa causar daqui em diante. O senhor fala demais: o que importa é o com­portamento.

K. — Tem um procurador que é muito amigo meu. Posso telefonar para ele?

Brig. — Claro… Mas não tem o menor sentido.

K. — Como! não tem o menor sentido? E o que o senhor está fazendo aqui tem algum sentido? O senhor cai em cima de mim, e quando vou telefonar a um procurador meu amigo, para lhe dizer que estou detido, o senhor tem a coragem de me dizer que isso não vai adiantar nada…

Brig. — Então, telefona. Por favor.

K. — Não, não quero mais; desisti.

***

(E assim decorre o resto do processo: José K. não chega a provar que é inocente, e nem mesmo a compreender quem o acusa e de quê o acusa; no fim, é executado.)


Publicado na revista Manchete, em 06.06.1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , ,