De repente
Paulo Mendes Campos
De repente, pela primeira vez com essa intensidade, luminosa e embriagadora, a tentação de deixar para todo o sempre de escrever. Ah, deixar de escrever! Como quem deixa de beber e se inebria de sobriedade. Como quem deixa a família e vai viver sozinho. Como quem, sem esperança ou desespero, deixasse com resolução a vida. Desquitar-me desse longo e penoso matrimônio com o dicionário, dessa gana sofrida de acordar com as palavras na vidraça, de carregá-las pelas ruas, de almoçá-las ao meio-dia, de bebê-las aos goles lentos na melancolia da tardinha, de possuí-las pela metade na hora do amor, de sonhá-las confusamente até morrer.
Deixar de escrever! Beber a água na concha da mão sem o expediente do copo. Acariciar sem vogais um ventre sem consoantes. A folha de papel, o branco do muro, o negro da lousa: deixá-los intactos. A folha de agave, o caule de bambu, a areia da praia. Intactas deixar as jazidas de matéria-prima da escritura: o corrimão da infância, a velha paralítica, o espinheiro sobre o regato ressequido, o cavalo moribundo, o pontilhão ferroviário, o caminho crepuscular onde rola a flor silvestre. Deixá-las, são coisas, minerais cristalizados no silêncio de ter vivido. Deixar na penumbra da rouparia os pesados passos de Frei Vicente e no oco do noturno o grito que te encheu de espanto: são almas, não se exprimem, passos que ninguém mais escutará além de ti, grito mudo para o resto do mundo: fantasmas teus, particulares, intransferíveis.
Deixar de! Limpar as escamas dos sentidos, ver, ouvir, pegar, saborear os temperos terrestres, meter o nariz aonde não fores chamado sem fazer o relatório misterioso de tua indiscrição. Gozar livremente a tua clandestinidade dentro do mundo. Partir para Minas Gerais ou Portugal apenas por partir, recuperando o que é teu, sem esconder nos refolhos da bagagem o teu prontuário de espião, de agente secreto do imperialismo semântico ou 007 duma Causa perdida no infinito.
Não ser um escritor, mas um ex-critor — para ter direito a trocadilhos idiotas. Nunca mais ouvir à entrada da sala: Este é o escritor Fulano de Tal. Não mais ser telefonado de redações entediadas, que perguntam: O que o senhor pensa do beijo na boca entre os noivos? Que humilhação ser escritor! Ter pai e mãe: sem transformá-los em sonetos. Gozar integralmente o voo da gaivota: sem buscar-lhe um símbolo. Amar sem comer as raízes do amor. Esquecer para sempre a obsessão de transformar o ouro em pedra, numa alquimia às avessas. Acordar enfim sem compromisso e sem a intolerável certeza duma falência inenarrável.
Ah, deixar de escrever! Nem mereço tanto!
Por isso continuarei. Como gane eternamente para a Lua dos doidos o cão amaldiçoado em alguma história (seguramente) infantil.
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Publicado na revista Manchete, em 19 de dezembro de 1964