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Dar um jeitinho – por Paulo Mendes Campos

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Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Dar um jeitinho

Paulo Mendes Campos

Escrevi na semana passada que há duas constantes na maneira de ser do brasileiro: a capacidade de adiar e a capacidade de dar um jeito. Citei um livro francês sobre o Brasil, no qual o autor dizia que só há uma palavra impor­tante entre nós: amanhã. Pois fui ler também o livro Brazilian Adventure, de 1933, do inglês Pe­ter Fleming, integrante da comitiva que andou por aqui, há trinta anos, em busca do coronel Fawcett. Pois no capítulo dedicado ao Rio, sem dúvida a capital do amanhã, achei este pedaço: “A procrastinação por princípio – a procrasti­nação pela própria procrastinação – foi uma coisa com a qual depressa aprendi a contar. Aprendi a necessidade da resignação, a psico­logia da resignação: tudo, menos a resignação em si mesma. No fim extremo, continuei a lutar com infelicidade; no fim extremo, contrariando o meu mais justo aviso, sabendo a futilidade disso, continuei a engambelar, a insultar, a ameaçar, a subornar os procrastinadores, ten­tando diminuir a demora. Nunca me valeu de nada. Adiar no Brasil é um clima. Não é pos­sível evitá-lo. Não há nada a fazer quanto a isso”.

Não é verdade: há uma forma de vencer a interminável procrastinação brasileira: é dar um jeitinho. O inglês apelou para a ignorância, a sedução, o suborno. Pois o jeito era dar um jeito.

Dar um jeito é a outra disposição cem por cento nacional, inencontrável em qualquer ou­tra parte do mundo. Dar um jeito é um talento. Coisa que a pessoa de fora não consegue en­tender, a não ser depois de viver dez anos no Brasil, beber cachaça, adorar feijoada e jogar no bicho. É preciso ser bem brasileiro para se ter o ânimo e a graça de dar um jeitinho a uma situação inajeitável. Em vez de cantar o Hino Nacional, a meu ver, o candidato à naturaliza­ção deveria passar por uma única prova: dar o jeitinho em uma situação complicada.

Chegou a minha vez de dar um jeito nesta crônica: há vários anos andou por aqui uma repórter alemã, que tive o prazer de conhecer. Tendo de realizar várias incursões jornalísticas pelo país, a moça frequentemente expunha pro­blemas de ordem prática a confrades brasilei­ros. Em breve, reparou, espantada, que os nos­sos jornalistas reagiam sempre do mesmo modo aos “galhos” que ela apresentava: vamos dar um jeito. E o sujeito pegava o telefone, falava com uma porção de gente, e dava um jeito. Sempre dava um jeito.

Mas, perguntou-me, que é dar um jeito? Na Alemanha não tinha disso não. Tentei explicar-lhe, sem sucesso, a teoria fundamental de dar um jeito, ciência que, se difundida na Europa, teria certamente evitado duas ou três guerras. A alemã me passou a fazer tantas perguntas, que resolvi passar à aula prática. Fiz com que entrasse na casa comercial de propriedade de um amigo, comerciante cem por cento, relacio­nado apenas a seus negócios, seus fregueses, passando o dia todo e as primeiras horas da noite dentro da loja. Portanto, pessoa inadequa­da para resolver a questão que forjei no mo­mento de parceria com a jornalista.

Apresentei ele a ela e fui contando a men­tira: o pai da moça morava na Alemanha orien­tal; tinha fugido para a Alemanha ocidental; no momento, pretendia retornar à Alemanha orien­tal, mas temia ser preso; era preciso evitar que o pai da moça fosse preso; que se podia fazer?

Meu amigo comerciante ouviu tudo, atento, sem o menor sinal de surpresa, metido logo no seu papel de mediador, como se fosse o próprio secretário das Nações Unidas. Qual! o próprio secretário das Nações Unidas não teria escuta­do aquela conversa com tão extraordinária na­turalidade. A par do estranho problema, o co­merciante deu uma olhada compreensiva para a jornalista, olhou para mim, depois para o teto, tirou uma fumaça no cigarro e disse gravemen­te, mas certo de que tudo se resolveria: “O negócio é meio difícil… É… Esta é meio com­plicada… Mas, vamos ver se a gente dá um jeito”.

Puxou uma caderneta do bolso, percorrendo-lhe as páginas, e murmurando com a mais comovente seriedade: “Deixa-me ver antes de tudo quem eu conheço que seja amigo do mi­nistro das Relações Exteriores”

A jornalista alemã ficou boquiaberta.

 

Publicado na revista Manchete em 21.3.64.