1º Caderno, Imagens pintadas
Cruzeiro forte
C.D.A
João Brandão lê assiduamente o Diário do Congresso, acompanha com interesse o serviço das Câmaras. Por isso, surpreendeu-se com a discussão do projeto que manda extinguir… o centavo.
– Pensei que fossem restabelecê-lo, criá-lo de novo, inventá-lo. Extinguir o quê? É o mesmo que fazer uma lei acabando com a guerra do Paraguai ou proibindo os carros de boi na avenida Atlântica.
Em compensação, aceita em princípio outro projeto, mais objetivo, que institui o cruzeiro forte. Só que, com sabedoria de homem vivido, acha melhor dar logo à nova moeda o nome de cruzeiro fortíssimo, para que ela imponha respeito. Não concorda de todo é em atribuir ao cruzeiro fortíssimo o valor de cem cruzeiros atuais.
Explica-me: não é absolutamente partidário da linha dura, que trata de amolecer e até extinguir o Congresso, como se este fosse o saudoso centavo. Em consequência, entende que as leis saídas do augusto poder devem ser isentas de humorismo, fator negativo para a existência da instituição. Ora, dar a alguma coisa forte o valor de cem cruzeiros não é brincar, em tempos que não são para brincadeira?
– O melhor é não atribuir valor nenhum fixo ao cruzeiro reforçado – comenta meu ponderado amigo. Nisso residirá sua força invencível, valendo tanto quanto a inflação. Sabe de uma coisa? Neste momento me ocorre que a solução perfeita é atribuir ao cruzeiro o valor de um dólar. E com isto ainda seremos camaradas.
Como lesse o assombro no meu rosto:
– Se você for ao dicionário de Aulete [1] (não confundir com o de Aurélio) verá que a definição clássica de dólar é esta: moeda de prata dos Estados Unidos, correspondente a 932 réis. O cruzeiro valia nominalmente mil réis, como você, que é mais velho, deve estar lembrado. Estabelecendo paridade entre as moedas, abrimos mão de 68 réis – em benefício, digamos, da Aliança para o Progresso.
Perguntei a João se ele não queria criar simplesmente um mito, e ele me retrucou que mito é a própria moeda em si, como míticas são as notas de 10.000 cruzeiros que já se cogita de imprimir, faltando apenas escolher os mitos a serem contemplados no verso e no anverso das ditas: a Paz, a Fraternidade, a Família Unida, o Comércio, a Justiça? O importante – continuou – é fabricarmos mitos prestigiosos, que todo mundo venere, como se venera o mito Independence Hall das notas de cem dólares.
– Papai, interrompe João Brandão Jr., já manjei tudo. Vocês não sabem fazer leis. Eu tenho só 12 anos mas fazia uma assim: “Art. 1º. O cruzeiro fica sendo chamado dólar. Art. 2º. Quem não gostar entra em cana”. Morou?
– Não é má ideia, diabo, respondeu João Brandão, e em regozijo pela bossa do garoto passou-lhe uma nota de 5.000 fracos para ele lanchar com o brotinho.
O que o beneficiado achou uma micharia.
Nota do site:
[1] Originalmente editado no fim do século XIX, o Projeto Caldas Aulete, desenvolvido pela editora Lexikon, é até hoje um dos mais preciosos bancos de dados da língua portuguesa. Sua última edição no Brasil foi na década de 1980.
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Publicado no jornal Correio da Manhã, em 19 de agosto de 1964