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Cruzeiro forte – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 19.8.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 19.8.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens pintadas
Cruzeiro forte
C.D.A

João Brandão lê assiduamente o Diário do Congresso, acompanha com interesse o serviço das Câmaras. Por isso, surpreendeu-se com a discussão do projeto que manda extinguir… o centavo.

– Pensei que fossem restabelecê-lo, criá-lo de novo, inventá-lo. Extinguir o quê? É o mesmo que fazer uma lei acabando com a guerra do Paraguai ou proibindo os carros de boi na avenida Atlântica.

Em compensação, aceita em princípio outro projeto, mais objetivo, que institui o cruzeiro forte. Só que, com sabedoria de homem vivido, acha melhor dar logo à nova moeda o nome de cruzeiro fortíssimo, para que ela imponha respeito. Não concorda de todo é em atribuir ao cruzeiro fortíssimo o valor de cem cruzeiros atuais.

Explica-me: não é absolutamente partidário da linha dura, que trata de amolecer e até extinguir o Congresso, como se este fosse o saudoso centavo. Em consequência, entende que as leis saídas do augusto poder devem ser isentas de humorismo, fator negativo para a existência da instituição. Ora, dar a alguma coisa forte o valor de cem cruzeiros não é brincar, em tempos que não são para brincadeira?

– O melhor é não atribuir valor nenhum fixo ao cruzeiro reforçado – comenta meu ponderado amigo. Nisso residirá sua força invencível, valendo tanto quanto a inflação. Sabe de uma coisa? Neste momento me ocorre que a solução perfeita é atribuir ao cruzeiro o valor de um dólar. E com isto ainda seremos camaradas.

Como lesse o assombro no meu rosto:

– Se você for ao dicionário de Aulete [1] (não confundir com o de Aurélio) verá que a definição clássica de dólar é esta: moeda de prata dos Estados Unidos, correspondente a 932 réis. O cruzeiro valia nominalmente mil réis, como você, que é mais velho, deve estar lembrado. Estabelecendo paridade entre as moedas, abrimos mão de 68 réis – em benefício, digamos, da Aliança para o Progresso.

Perguntei a João se ele não queria criar simplesmente um mito, e ele me retrucou que mito é a própria moeda em si, como míticas são as notas de 10.000 cruzeiros que já se cogita de imprimir, faltando apenas escolher os mitos a serem contemplados no verso e no anverso das ditas: a Paz, a Fraternidade, a Família Unida, o Comércio, a Justiça? O importante – continuou – é fabricarmos mitos prestigiosos, que todo mundo venere, como se venera o mito Independence Hall das notas de cem dólares.

– Papai, interrompe João Brandão Jr., já manjei tudo. Vocês não sabem fazer leis. Eu tenho só 12 anos mas fazia uma assim: “Art. 1º. O cruzeiro fica sendo chamado dólar. Art. 2º. Quem não gostar entra em cana”. Morou?

– Não é má ideia, diabo, respondeu João Brandão, e em regozijo pela bossa do garoto passou-lhe uma nota de 5.000 fracos para ele lanchar com o brotinho.

O que o beneficiado achou uma micharia.


Nota do site:
[1] Originalmente editado no fim do século XIX, o Projeto Caldas Aulete, desenvolvido pela editora Lexikon, é até hoje um dos mais preciosos bancos de dados da língua portuguesa. Sua última edição no Brasil foi na década de 1980.

Publicado no jornal Correio da Manhã, em 19 de agosto de 1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , ,