No ano de 1964, Chico Buarque e Caetano Veloso começavam a calibrar as vocações musicais que os levariam a protagonistas essenciais da MPB dos últimos 50 anos. O carioca e o baiano fariam trajetórias paralelas – e às vezes conflitantes – que acabariam por se cruzar na megalópole de São Paulo dos anos 1960, dos grandes shows, festivais e programas de TV.
Quarto dos sete filhos do historiador e professor paulista Sérgio Buarque de Hollanda, falecido em 1982 aos 79 anos, e da carioca Maria Amélia, que morreu aos 100 anos em 2010, Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio, em 19 de junho de 1944, mas foi criado em São Paulo, e ainda morou dois anos em Roma. Desde a infância compunha marchinhas carnavalescas e até operetas, envolvia-se na atividade musical familiar, de onde ainda sairiam três irmãs cantoras: Miúcha, Cristina e Ana de Hollanda. Mas houve um episódio decisivo na mudança de estágio da devoção de Chico pela música popular: o lançamento, em agosto de 1958, do disco de 78 rotações “Chega de saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes com João Gilberto, autor do baião hai-kai “Bim bom” na outra face. “O que me levou para a música dessa forma arrebatadora foi o fato de eu ter 15 anos quando apareceu a bossa nova. Foi um marco, mas para quem tinha aquela idade, porque é na adolescência que se faz a cabeça musical”, admitiu ele em entrevista reproduzida no livro “Chico Buarque” (Relume Dumará, 1999), de Regina Zappa, da coleção Perfis do Rio. Além da proximidade do pai com o letrista da música, Vinicius de Moraes, frequentador da casa e futuro parceiro, Chico foi imantado pela música de Jobim, de quem também se tornaria parceiro, mais a voz e o violão de João Gilberto – mais adiante seu cunhado, pelo casamento com Miúcha. Chico comprou logo o disco e ficou tentando reproduzir os acordes da debutante bossa nova que amalgamaria seu estilo inicial, junto com a tradição musical brasileira ouvida em casa e no rádio – de Noel Rosa e Ismael Silva, a Ataulfo Alves, Dorival Caymmi e Geraldo Pereira.
Nascido em 7 de agosto de 1942, na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, berço do samba de roda, também numa prole de sete irmãos, dos quais era o quinto, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso é filho de um funcionário dos Correios local, José Teles Veloso, seu Zezinho, e de Dona Claudionor, a Dona Canô. Ele morreu em 1983, aos 82 anos, e ela aos 105 anos, em 2012, numa curiosa simetria entre famílias prolíficas de progenitores longevos. Caetano também foi impactado pela polimorfa musicalidade da era do rádio, a ponto de sugerir o nome de Maria Bethânia para a irmã mais nova, nascida em 1946, a partir do título de uma “valsa canção” do pernambucano Capiba, sucesso do cantor Nelson Gonçalves no ano anterior. Em 1956, passou um ano na casa de parentes no subúrbio de Guadalupe, no Rio, e apesar da distância, sempre que podia, frequentava o auditório da Rádio Nacional, no centro da cidade. Mas foi também João Gilberto quem mudou o vetor de seus interesses musicais. “Eu tinha 17 anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade, que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria”, reconstituiu ele em seu livro “Verdade tropical” (Companhia das Letras, 1997). “Caetano, você que gosta de coisas loucas, precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai para um lado e ele vai para o outro”, convidou o amigo, referindo-se à gravação de João Gilberto de “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça. “A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo – o que é mais importante – as nossas possibilidades”, avaliou ele no livro.
A adolescência paulistana de Chico Buarque oscilou entre extremos. Da adesão a uma espécie de seita direitista, os Ultramontanos (pré-Tradição Família e Propriedade), quando estudava no Colégio Santa Cruz, de padres canadenses, à rebeldia sem causa, de “puxar” um carro na madrugada com um amigo e ir parar na página policial, com a tarja preta no rosto reservada aos menores de idade. Começou a participar de shows ainda no Santa Cruz, mas, de 12 a 14 de junho de 1964, pisou o palco circular do já mítico Teatro de Arena, na rua Teodoro Baima, no centro paulistano. Com o golpe militar, seus expoentes Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal tiveram de esconder-se para não ser presos. O teatro ficaria fechado mais tempo não fosse a iniciativa de Renato Corrêa e Castro, ator e dramaturgo, de reabri-lo, mesmo com algo amadorístico, o libelo antirracista formado por pequenos esquetes “Nós pintamos um quadro… um quadro negro”. Reunia estudantes dali de perto, do Mackenzie, da Filosofia e da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), onde Chico estudou até o terceiro ano. Produzido pela Sojoama (Sociedade dos Jovens Amigos da Arte), o protótipo de musical era ancorado no talento de dois novatos. Um era o uruguaio criado no Rio Taiguara Chalar da Silva, cujo “Samba de copo na mão” já circulava pelos arredores do João Sebastião Bar, uma espécie de Beco das Garrafas da bossa paulistana, comandado pelo jornalista e ativista Paulo Cotrim. E Chico, de livre trânsito no circuito estudantil com sua “Marcha para um dia de sol” (“eu quero ver um dia/ numa só canção/ o pobre e o rico/ andando mão em mão”), alcunhada “João XXIII”, por afinidade com as encíclicas do papa Ângelo Roncalli, gravada em 1965 por Maricene Costa. Seria seu único registro.
Chico desprezou, por imatura, essa primeira fase autoral, que tinha ainda “Alvorada”, “Roda gigante”, “Lá na favela”, “Teresa tristeza”, e fincou como marco inicial de sua obra “Tem mais samba”, composta para outro musical protagonizado por Taiguara, “Balanço de Orfeu”, organizado por Luiz Vergueiro em dezembro de 1964. Até lá, Chico participaria de espetáculos como “Primeira audição”, no Colégio Rio Branco, e outros montados pelo produtor Walter Silva, o Pica Pau. Um deles é considerado sua primeira apresentação profissional: “Mens sana in corpore samba”, em 16 de novembro, para os formandos de Educação Física da USP, ao lado de Toquinho, Taiguara e Tuca, e dos já afamados Roberto Menescal, Sylvia Telles e Oscar Castro Neves. Em 23 de novembro, outro show de título trocadilhesco do mesmo produtor: “Primeira Denti-Samba”, para os alunos da Faculdade de – qual mais? – Odontologia, com Elis Regina, Alaíde Costa, Geraldo Vandré, Copa Trio, Pery Ribeiro e os mesmos novatos. Em 23 de dezembro, Chico recebe o primeiro cachê no espetáculo “O momento é bossa”, no Cine Ouro Verde, em Campinas.
Aos 18 anos, Caetano Veloso instalava-se em Salvador para cursar o antigo clássico, já que em Santo Amaro o ensino ia apenas até o primário. Levou a irmã, Bethânia, de 14, e mergulhou com ela na efervescência cultural da cidade, onde Alvinho Guimarães encomendou-lhe as primeiras trilhas sonoras para as peças que montava, entre elas “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues. Na capital baiana começou a formar-se um grupo com afinidades estéticas, que se reuniria num show no teatro Vila Velha, em 22 de agosto de 1964, “Nós, por exemplo”. Como lembra Caetano em seu livro, “era um concerto de apresentação de jovens músicos, quase todos absolutamente desconhecidos. Uma geração a que todos – ‘nós, por exemplo’ – pertencíamos, e que devia sua existência ao aparecimento da bossa nova”. Sob a direção do futuro produtor Roberto Santana, de Caetano e de Gilberto Gil, também escalados, subiriam ao palco, incluindo uma segunda apresentação, em 7 de setembro, Bethânia, Maria da Graça (futura Gal Costa), Antonio José (Tom Zé), o compositor Alcyvando Luz e o percussionista Djalma Correa.
No mesmo local, de 21 a 23 de novembro, o espetáculo seguinte, com os mesmos integrantes e mais o compositor Fernando Lona, “Nova bossa velha, velha bossa nova”, ampliava o conceito do anterior. “A partir do título, mostra nossa intenção de inserir o movimento numa visão de longo alcance da história da canção no Brasil”, pontuou Caetano. Maria Bethânia ainda estrelaria solo “Mora na filosofia”, no mesmo teatro, onde seria vista pela cantora Nara Leão, que a indicaria como substituta, quando ela deixou o elenco do show “Opinião”. Marco inicial dos musicais engajados, o espetáculo de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, dirigido por Augusto Boal, estreou no Teatro de Arena carioca, em Copacabana, em 11 de dezembro de 1964. Recheado de canções de protesto, era uma espécie de resposta frontal ao golpe militar, com Nara no papel da moça bossa nova da zona sul carioca, integrada ao samba de morro, defendido por Zé Kéti, e à música nordestina, representada pelo compositor maranhense João do Vale.
Ainda sem uma definição pela carreira musical, Caetano embarcou para o Rio com a missão dada pelo pai de escoltar a irmã, escalada para estrear no “Opinião” em 13 de fevereiro de 1965. Caberia a ela fazer o primeiro registro do compositor em disco, “É de manhã”, no outro lado do compacto simples que trazia sua assombrosa interpretação de “Carcará” (João do Vale/ José Cândido), um dos destaques do show. Ainda em 1965, o próprio Caetano estrearia como intérprete, num compacto na gravadora que contratara a irmã, a RCA, com suas composições “Cavaleiro” e “Samba em paz” (“O samba vai vencer/ quando o povo perceber/ que é o dono da jogada”).
A estreia de Chico Buarque em disco, no mesmo ano, também foi num compacto simples – o pau de sebo dos artistas da época – com a engajada “Pedro pedreiro” e a desiludida “Sonho de um carnaval”, defendida sem sucesso por Geraldo Vandré no Festival da Excelsior, realizado no Guarujá – o que projetou Elis Regina a bordo de “Arrastão”, composta pelo novato Edu Lobo em parceria com Vinicius de Moraes. Em 1965, Chico ainda musicaria o auto de Natal de João Cabral de Melo Neto “Morte e vida severina”, para uma montagem do teatro Tuca paulista, que acabaria premiada no festival universitário de Nancy, na França.
A partir daí, a história de ambos acelera-se, na vertigem competitiva e propulsora dos festivais. Com “Boa palavra”, na voz de Maria Odete, Caetano galga o quinto lugar do Festival da Excelsior de 1966, vencido por “Porta estandarte” (parceria com Vandré), do colega de início soteropolitano Fernando Lona. No mesmo ano, no Festival da Record, com a mesma intérprete, sua “Um dia” chegaria à final, mas Chico Buarque venceria a disputa com “A banda”, num empate diplomático com “Disparada”, de Vandré e Theo de Barros. O novo duelo da dupla de autores ocorreria no histórico Festival da TV Record, de 1967, vencido por “Ponteio” (Edu Lobo/Capinan). Chico ficou em terceiro com sua “Roda viva”, ensanduichada entre a segunda colocada, “Domingo no parque” (Gilberto Gil), e a terceira, “Alegria, alegria” (Caetano Veloso). “Roda viva” se tornaria peça de teatro, de encenação contundente do diretor Zé Celso Martinez Correa, que atrairia a ira e agressões aos atores pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Movidas a guitarras dos grupos roqueiros Mutantes e Beat Boys, as composições de Gil e Caetano deflagravam o movimento tropicalista, alvo dos nacionalistas e, adiante, do regime militar. Foram presos, confinados e exilados após o AI-5, de dezembro de 1968.
Chico também amargaria um auto-exílio, em Roma, em 1969, e na volta se tornaria um feroz oponente do regime, com repertórios sistematicamente censurados e constantes detenções policiais. A dupla se reuniria em dois shows, dias 10 e 11 de novembro de 1972, no Teatro Castro Alves, em Salvador, matéria-prima do disco “Caetano e Chico juntos e ao vivo”. Superavam-se no encontro mal-entendidos das refregas da era dos festivais. Chico era apontado por adeptos do baiano como artista conservador, em comparação ao vanguardismo do suposto antagonista. O criticado chegou a rebater num artigo de jornal intitulado “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”. Caetano fez uma gravação ambígua do samba-canção “Carolina”, na qual parece caricaturar a composição de Chico. Mas as divergências foram se diluindo à medida que cada qual agigantava-se em seu próprio caminho. Até uma nova convergência no programa da TV Globo “Chico & Caetano”, entre abril e dezembro de 1986. E recentemente, de novo, estiveram juntos no grupo Procure Saber, empenhado na criação de um órgão de fiscalização do Ecad, que centraliza os direitos autorais, e no veto a biografias não autorizadas.
Tárik de Souza é crítico musical, autor de “Tem mais samba – Das raízes à eletrônica”.