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Brasil em dicionário – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 18.9.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 18.9.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens de companhia
Brasil em dicionário
C.D.A

Quando ouço falar de monumentos que se inauguram pelo mundo afora, em honra de heróis mais ou menos autênticos, de figuras que se salientam nas diferentes ocupações humanas e até mesmo de guerras ou batalhas que sacrificaram infinidade de vidas – monumentos à crueldade ou à estupidez – costumo refletir que nunca ninguém se lembrou, que eu saiba, de erguer estátua ao autor de um dicionário – nem mesmo ao do primeiro dicionário conhecido, que um dicionário de literatura me informa ser um tal Julius Pollux, redator do Onomasticon no século II da era cristã.

Entretanto, bem que os dicionaristas o mereciam. Juntando gotas perdidas do oceano de palavras, gravando-lhes a forma duvidosa e fixando-lhes o sentido fugidio, eles tornaram possível um comércio mental que de modo algum chegaríamos a alcançar sem esses livros geralmente grossos, indispensáveis não só para o garoto pisar em cima e alcançar o armário de doces, como para explicar as mais finas especulações da ciência.

Por outro lado, podem os autores de léxicos consolar-se da omissão, pois, se realmente notáveis, seus cartapácios já constituem monumentos em si, e cada estante que possui um bom dicionário e cada leitor que o consulta e lhe é grato valem pela consagração em bronze na praça. De muitos livros me tenho desfeito, porque os julgue fúteis ou deixem de servir-me, porém nunca abri mão de um dicionário, e meu desejo maluco, mas compreensível, seria possuí-los todos numa edição concentrada que, contendo a suma dos tesouros verbais do universo, fosse o Dicionário da Vida.

Enquanto não se escreve essa obra, é preciso estimar as que nos apresentam muito da vida e se fazem nossos amenos, discretos e prestantes companheiros de todo dia. Folheio o último chegado para este serviço de assistência a domicilio: o Novo Dicionário Brasileiro Melhoramentos, organizado por Adalberto Prado e Silva, com uma equipe de colaboradores ilustres na qual um Fernando de Azevedo e um Flávio A. Pereira se juntam, entre os outros nomes respeitados, a um Alceu Maynard Araújo e a um Lourenço Filho.

Foi preciso que o Brasil desse um salto à frente para que chegássemos a ser capazes de produzir uma obra deste nível, em que a língua portuguesa aparece enriquecida e dinamizada por um sem-número de dizeres, expressões idiomáticas, modismos, neologias, termos populares e termos técnicos, a documentarem a corrente borbulhante de criação e transformação de valores, sensível na vida brasileira de hoje. E assim o dicionário passa de conselheiro confidencial de cada um de nós, a uma tarefa social: é o repositório de instrumentos destinados a forjar novas realidades, fornecendo indicações, precisões, materiais linguísticos adaptados à natureza do trabalho em todos os campos de pesquisa e produção.

Noto com prazer a copiosa ilustração que valoriza os verbetes. A palavra naveta surge ao lado de uma naveta de prata da Matriz de S. Pedro, da Bahia; marionete é documentada com o boneco representado de Carmen Miranda. É a imagem dando concreção e vivacidade ao texto. Se você pensa que seu mocassino é invenção urbana, veja o clichê do mocassino usado pelos índios Naskapi. Suavemente, deslizamos para a enciclopédia – mas estamos consultando apenas um dicionário brasileiro de sentido moderno, em que as coisas brasileiras assumem particular importância. Sua última palavra é zuzá: guizo feito de fruto seco de pequi, amarrado ao tornozelo dos dançarinos de Moçambique, em Goiás e Mato Grosso. Pois chacoalho o meu zuzá em louvor da turma que arrumou e apresenta este opulento supermercado de termos, ideias e imagens.


Publicado no jornal Correio da Manhã, em 18 de setembro de 1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , ,