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As eleições americanas (I) – por Rachel de Queiroz

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

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As eleições americanas (I)
Rachel de Queiroz

É bom falar nas eleições americanas agora que o presidente Lyndon Johnson está triunfalmente reeleito, com a sua vota­ção de avalanche (landslide), como eles dizem aqui. E o venci­do senador Barry Goldwater chora as mágoas e conta os erros, enquanto descansa das fadigas eleitorais com a sua Nancy, em alguma estação de férias, parece que nas Bermudas.

Mas antes do dia 3 de novembro passado havia muito receio e até aflição. Temia-se o falado backlash dos brancos, a forra na urna, a votação maciça da população branca em Goldwater, como represália às desordens e violências cometidas por grupos radicais negros durante a batalha dos civil rights, nas ruas das grandes cidades, especialmente em Nova Iorque, onde jamais se vira isso.

A posição de Johnson, de obediência às medidas de igualda­de racial determinadas pela Suprema Corte, e as enfáticas afir­mativas feitas pelo presidente, na campanha eleitoral, de conti­nuar a revigorar a política em prol da extensão dos direitos civis da minoria negra, faziam temer aos entendidos essa rea­ção de intolerância branca. Felizmente verificou-se que, na sua imensa maioria, o povo americano é muito mais equilibrado, sensível e sinceramente democrático do que se diz no exterior, e do que aqui mesmo se receava. Que a bestialidade racista, se nesta terra ainda tem os seus sólidos bastiões, é renegada e combatida como uma doença, por uma maioria liberal e inte­gracionista tão esmagadora como jamais se viu em todos os cento e oitenta e oito anos de independência dos Estados Unidos.

Nas semanas anteriores à eleição havia muita discussão, suspense e propaganda, é verdade; mas tudo muito longe daquele ambiente de competição histérica, promovida pelos candidatos, que se vê no Brasil. Aquela publicidade em faixas, que transfor­ma as ruas em imensos varais de panos encardidos, os miúdos cartazes superpostos, grudados às árvores, aos postes, aos prédios e monumentos mais veneráveis, não os vi por aqui. Por cá é mais dignified. Cartazes sim, mas relativamente poucos, caros, desses grandes que as empresas poderosas erguem à margem das rodovias. Em geral fazendo propaganda dos candidatos à pre­sidência, à governadoria do estado, ao senado. A arraia-miúda das listas eleitorais evidentemente não dispõe de fundos bastan­tes para entrar nessa competição publicitária. Nos jornais sai matéria de propaganda — mas não tanta quando seria de espe­rar. Aliás, a coisa é curiosa, não se sente que a imprensa, aqui, tenha em grande escala a sua tradicional força formadora de opinião. A imprensa antes parece caudatária do que porta-estandarte, se me explico bem. Ninguém parece ter ilusões sobre a li­berdade dos grandes jornais, notoriamente ligados a conhecidos grupos. Pelo que converso com muita gente, não se nota que nenhuma campanha política dos jornais apaixone e abra sulcos importantes na opinião pública.

A grande arena é a TV. A propaganda pela televisão, pa­ga a preço de ouro — que digo? a preço de urânio, pelo menos em dólar vivo, exaura as reservas partidárias mais ricas. Os tesoureiros dos partidos vivem a pedir fundos, a exigir mais dinheiro, mais dinheiro, para cuja aquisição o mais comum são os jantares políticos, a cem dólares o talher.

É trancado hermeticamente na sua casa ou apartamento aquecido para estes primeiros frios do outono, depois que chega do trabalho e janta, que o americano recebe a sua doutrinação política. Ou mesmo enquanto janta. Pois aqui cada vez mais aumenta a voga do TV dinner, que se compra pronto e con­gelado nos supermercados. É um prato de papelão aluminizado, semelhante às bandejas de lanche que servem à gente nos aviões, contendo um jantar completo (para americano, naturalmen­te…) que se põe a descongelar no forno. Cada pessoa da fa­mília apanha o seu — é grande a variedade dos menus — e se aboleta defronte ao aparelho de TV, comendo enquanto assiste ao debate.

Pela televisão é que os candidatos explicam o seu programa, xingam os adversários, entregam-se mesmo a desafios, como cantadores nordestinos. Assim se estimula e seduz o eleitorado. Tudo enlatado, trancado dentro de casa, assistindo calado, co­mendo, deixando-se penetrar pela propaganda.

E há também, fora da TV, as chamadas motorcades, ou cor­tejo de automóveis, que correm as cidades. O candidato vem de avião, forma-se o cortejo, e saem por aí, fazendo discursos nos pontos de maior concentração de gente. E há os trens elei­torais, como o de Goldwater, ou o Lady Bird Special, da enérgica esposa do presidente, que tomou parte na campanha como se ela própria fosse candidata. E de certa forma o era. O trem sai por aí, nessas infindáveis rodovias americanas que cruzam o país inteiro numa bitola só, para em todo lugarejo, usa a pla­taforma do último carro como palanque, é recebido triunfal­mente pelas bandas de música locais, recebe a saudação dos maiorais correligionários, o aplauso da massa espetada de car­tazes; faz o discurso, apita e vai embora. No trem, a comitiva mora, dorme, come, trabalha. Deve ser de matar.

Por falar em cartazes, os mais curiosos que vi foram pró-Goldwater, em universidades. Uma simples fórmula química: “Au-H20” (ouro e água — gold water).

Robert Kennedy, irmão do falecido presidente, é que dava um tom, digamos, mais “latino” à sua propaganda, que tinha como cenário principal a cidade de Nova Iorque — e talvez o fizesse por isso, por ser em Nova Iorque, que é diferente de todo o resto da América. Candidato ao Senado pelo Estado de Nova Iorque, elegeu-se bem. Dois Kennedys, aliás, estão agora no se­nado americano, Robert e Edward (Teddy), que assim mesmo no leito de hospital, onde convalesce da espinha maltratada num desastre de avião, fez campanha e se elegeu pelo Massachusetts. Bob Kennedy, que é moço e bonito, mostrava-se abundante pe­las ruas, promovia festas, tomava parte em passeatas. Na pa­rada da Descoberta da América (que aqui chamam Columbus Day) deu muito que falar aos adversários porque levou consigo o filhinho do finado presidente, o pequeno John-John, capita­lizando eleitoralmente a reação sentimental do povo ante a pre­sença do garoto órfão, a marchar como um homenzinho ao lado do tio.

(Continua na próxima semana)

Publicado na revista O Cruzeiro, em 5 de dezembro de 1964.

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , ,