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América, ribeira do Atlântico – por Rachel de Queiroz

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

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América, ribeira do Atlântico
Rachel de Queiroz

Os Estados Unidos, que se sentem superiores à Europa por tantos motivos, [re]conhecem, en­tretanto, que há um terreno em que os euro­peus não podem temer a concorrência america­na: as suas tradições. Pois mesmo o material que poderia aqui ser conservado, dos séculos XVII e XVIII, praticamente desaparecera, por dois motivos principais: a febre de progresso do século XIX, que tudo demolia, e a circuns­tância de quase todas as construções coloniais americanas serem de madeira, material notoriamente perecível. Mas não seja isso obstáculo: se o país já não tem antiguidade, reconstruam-se as antiguidades!

E com aquela deliberação, capacidade de trabalho e gosto de gastar dinheiro que os ca­racteriza, puseram-se os americanos a levantar de novo os marcos do passado, que impruden­temente tinham deixado ir abaixo.

A obra-prima dessa faina de recomposição é a velha cidade de Wílliamsburg, na Virgínia, hoje santuário nacional de americanidade.

Durante quase um século, foi Williamsburg capital da Virgínia e ponto de encontro da sua aristocracia rural. No palácio vivia o Lord Go­vernador, representante do rei inglês. Em ou­tros paços reunia-se a Assembleia — a primei­ra da América a intitular-se romanamente de “Capitólio”. As mais elegantes e ricas casas particulares, tavernas, igrejas da Virgínia es­tavam em Williamsburg e suas lojas recebiam, diretamente do reino, alfaias, móveis, panos, vi­nhos e guloseimas.

Durante as guerras da Independência, ain­da teve Williamsburg a sua fase de fastígio, quando serviu de quartel-general às tropas de Washington. Mas, depois de 1780, mudou-se pa­ra Richmond, a capital da Virgínia, e Williams­burg entrou em declínio. Pelos começos do sé­culo XX era apenas uma velha vila do velho Sul, com algumas casas antigas em ruína, algu­mas casas novas e os seus edifícios públicos demolidos; deles só restava, parcialmente de pé, o Colégio William and Mary, centro educa­cional da fidalguia virginiana e que, através dos tempos, continuava a dar instrução aos jovens americanos.

Mas chegou o ano de 1926 — e aí se deu a grande transformação. Segundo contam os pros­pectos de propaganda, dois homens são os res­ponsáveis pela ressurreição da cidade: o Reve­rendo Goodwin, reitor da paróquia de Bruton, na cidade, e John D. Rockefeller Jr. Muito tempo sonhou o Reverendo em preservar o que ainda restava da parte histórica de Williamsburg, até que um dia encontrou o magnata. Rockefeller se entusiasmou com a ideia, assumiu a chefia da obra de restauração e, claro, forneceu o di­nheiro: 70 milhões de dólares, o que, traduzido em brasileiro, quer dizer cerca de 130 bilhões de cruzeiros.

E começou a restaurar, ou antes, a recons­truir. Pois a proporção de edifícios ainda de pé, passíveis de restauração, era como naquela ane­dota do hoteleiro francês que fazia pastéis de andorinha “meio a meio” com carne de cava­lo: uma andorinha para um cavalo…

Não se pode imaginar o que foi esse traba­lho. Fizeram os técnicos escavações arqueológi­cas como só em Pompeia. Descobriram os ali­cerces dos velhos prédios, abriram cortes nas diversas camadas de terreno, desenterrando fragmentos de louça, utensílios, ferramentas, até sapatos velhos — tudo que pudesse informar acerca do modus vivendi da comunidade. Con­sultaram tudo quanto foi arquivo existente, lis­tas de inventários e leilões, obras literárias, jor­nais da época. Desencavaram plantas dos edifícios nos arquivos públicos daqui e da Inglater­ra. E, baseados nessas pesquisas exaustivas (lembremo-nos que, dos setenta milhões de dó­lares, só um terço foi gasto em material!), aos poucos nasceu de novo Williamsburg.

As obras-primas da “restauração” foram o Capitólio e o Palácio do Governador. Ambos haviam sido destruídos por incêndios e sobre o local do Palácio já se erguia outro edifício, uma escola. Obedecendo aos velhos alicerces desenterrados, edificaram as paredes novas. Criaram oficinas próprias, onde se fabricava desde o prego, a fechadura, a dobradiça, a te­lha, por artesãos, tal como se fazia no século XVIII. Quando chegou a vez da decoração e do mobiliário, apelou-se para todos os colecionado­res de velhas alfaias daqui e da Europa, e o que não se pôde obter, por doação ou compra, foi copiado. Até para a recomposição dos jar­dins se redescobriu toda a flora hortícola do período, de modo que na Williamsburg inteira não se vê uma flor, ou uma árvore, que não devesse ser cultivada no tempo de George Washington. Inclusive o formato dos canteiros e o recorte dos arbustos. O calçamento das ruas, as lajes das calçadas são também reconstitui­ções. Enfim, todo o perímetro urbano da cidade é um museu; e se as casas particulares são ha­bitadas, para manter o ambiente “vivo” e se facilitar a conservação, os moradores devem se conformar com regras rígidas que proíbem a mínima alteração nas period pieces. E as­sim, se, na verdade, Williamsburg não é propriamente uma cidade histórica, é, na verdade, um cenário de grande espetáculo minuciosa­mente refeito, um pouco à maneira de Cecil B. de Mille. Porque não lhe faltam, sequer, os figurantes vivos, as hostesses vestidas de panier à moda de Maria Antonieta, os lacaios de libré e cabeleira, as carruagens, a iluminação à luz de velas.

Toda a renda turística, que é imensa, re­verte em benefício da Fundação que gere Wil­liamsburg e é utilizada nas obras de conserva­ção. A organização é perfeita e o turista, vindo de todos os 50 estados da União Americana, en­contra, nas hospedarias da cidade, nos motéis da periferia e no imenso Centro de Informa­ções, tudo que carecer para o seu conforto e esclarecimento.

E eu fico pensando na nossa Ouro Preto — no que não seria aquele tesouro de verdade na mão de americanos. Tudo autêntico, nada “re­construído” e não madeira e estuque — mas a pedra, o mármore, a pedra-sabão, o ouro!

Meu caro Governador Magalhães Pinto, por que não manda os seus funcionários de turismo fazerem um estágio em Williamsburg, para que vejam como se explora devidamente um local histórico? E penso não só em Ouro Preto, mas em Tiradentes, S. João del-Rei, Congonhas, Sabará, Mariana. Dá vontade de chorar, ver o par­tido que o povo daqui tira de uma coisa míni­ma, mais suposta que real, e nós com aquele material imenso, que só ainda está de pé, só ainda existe, porque Rodrigo Melo Franco é um herói e o Serviço do Patrimônio Histórico é um viveiro de maníacos, de abnegados.


Publicado na revista O Cruzeiro, em 14 de novembro de 1964.

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , ,