1º Caderno, Imagens diferentes
Alécio & criança
C.D.A
Na Petite Galerie um rapaz com cara de menino abriu uma exposição de fotografias. Aconselho meu leitor, se é que existe, a ir espiá-las. O rapaz chama-se Alécio de Andrade e não é meu parente; numerosos como as gotas d’água no oceano são os Andrades na terra, porém não revestem esse ar de família fechada e única, próprio das gotas. Portanto não estou fazendo promoção de nenhum tio ou sobrinho. Acontece que vale mesmo a pena ver as fotos de Alécio. Se você não sair de lá com uma big ternura pela vida, então meu caro, desista de considerar-se gente; o provável é que você seja apenas um objeto falante, e mesmo isso…
A exposição chama-se “Itinerário da infância” e leva-nos de passeio pelas fisionomias e pelos gestos das crianças: as que vemos todo dia, nos parques de recreio, nas praças, mas vistas outra vez e com olhos mais demorados e compreensivos por Alécio (não tivesse ele cara de menino!). Não com essa melosidade com que se costuma olhar para os garotos quando se trata de nossos filhos ou dos filhos de nossos amigos, desde que não lambuzem a calça. Melosidade que apenas disfarça a vaidade da autoria ou exprime a nossa lisonja, no fundo indiferente. Esta não é a maneira correta de ver a criança. Se quisermos penetrar um pouco no segredo infantil através do semblante e captar essa imagem fugitiva, há de ser com um misto de carinhosa paciência e ardilosa simpatia. A experiência de Alécio foi além: atingiu o momento em que as crianças se revelam sem medo, naturalmente, apenas curiosas pelo que o fotógrafo está fazendo. E nesse encontro com o refolhado mistério que se torna simples, acessível, está a preciosidade destas imagens em que a poesia não é elemento externo, ajuntado, mas a própria essência da coisa. Daí a felicidade que nos transmite. Ó descoberta, ó reencontro de nós mesmos!
Tentei dizer de minha emoção em algumas palavras oferecidas a Alécio e que aqui reproduzo:
“Olha, descobre este segredo: uma coisa são duas – ela mesma e sua imagem.
Repara mais ainda. Uma coisa são inúmeras coisas.
Sua imagem contém infinidade de imagens em estado de sonho, germinando no espaço e na luz.
E as criaturas são também assim, múltiplas de si mesmas.
A variedade de imagens revela o mundo que nasce a cada instante em que o contemplas: formas, ritmos, ângulos, expressões, impressões, fragmentos, síntese.
A imagem é um ser vivo, com os demais seres. E quer penetrar em teu espírito, habitá-lo como hóspede afetuoso.
Se a recolheres como toda a pureza da vista e completa simpatia da mente, ela te enriquecerá.
Estas imagens vão mais longe do que os meios intersiderais de comunicação. Insinuam-se na profunda região da vida.
Conversam daquele assunto que carregas contigo como baú nostálgico.
O baú abre-se, e tua infância te saúda, com inocência de fonte.
Não pode haver melhor uso da fotografia do que este de alimentar-nos da porção perdida de nossa alma.
Uma arte vinculada com a mais fugitiva e perene das realidades poéticas, eis o dom sublime de Alécio de Andrade.”
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Publicado no jornal Correio da Manhã, em 30 de setembro de 1964