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A nova revolução – por Rachel de Queiroz

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

Arquivo Rachel de Queiroz / Acervo IMS

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A nova revolução
Rachel de Queiroz

Um dos aspectos mais importantes e tranquilizadores desta revolução que veio tirar o Brasil do charco janguista é que ela não se arreceia de ser revolução mesmo. Dá aos seus chefes o título de co­mando revolucionário, proclama-se revolução sem medo da palavra e, com o Ato Institucional, como que materializou, documentou o fato concreto e assumiu abertamente todas as responsabilidades do movimento armado de libertação nacio­nal.

Não caiu no erro dos movimentos an­teriores, como os que por duas vezes derru­baram Getúlio Vargas. Os homens de 45 e 54, quem os definiu bem foi um velho estancieiro que conheci no Rio Grande: “Tem a mania de fazer mal à moça e de­pois casar com ela de véu e flor de la­ranjeira!”

Tudo que estamos fazendo agora po­deria ter sido feito durante o governo Ca­fé Filho, mas no governo Café tinha-se que manter a ficção de que houvera suces­são normal do presidente pelo seu vice: — passava-se uma esponja sobre a insurrei­ção de altas patentes que depusera Getú­lio e a preocupação de todos era uma úni­ca: manter o status quo! E, afinal, aconte­ceu o inevitável: a facção derrubada rea­grupou-se, forte dos direitos que nós mes­mos lhe púnhamos nas mãos, como se ela os merecesse; soprou ao ouvido, assustou e exarcebou alguns generais — e se de­pôs o presidente Café Filho sob a alega­ção de que ele estava cultivando revolu­cionários — os revolucionários daquela mesma revolução que o levara ao poder. Quando o então jornalista Carlos Lacer­da, pela Tribuna da Imprensa, pedia me­didas excepcionais para garantir a sobre­vivência do movimento de regeneração que provocara o São Bartolomeu de 54, medi­das que impedissem o retrocesso ao varguismo, as pudicas donzelas dos haréns do Estado Novo tapavam a face e clama­vam contra o golpe de Estado!

Em 1945 derrubou-se uma ditadura fascista, com 15 anos de opressão, e san­gue e impunidade — e não se cassou um direito político, não se tornou inelegível sequer um único dos homens da ditadura, nem mesmo os gauleiters [1] mais insolentes, os pretorianos mais brutais, os ladrões pú­blicos mais ávidos. Pelo contrário, foi em 45 que iniciaram brilhante carreira político-democrática os homens mais compro­metidos com o Estado Novo. Ainda estão por aí, senadores, ministros, embaixado­res, presidentes de partido, aqueles que representaram a alma e a força da ditadu­ra. Não se derrubou a máquina, apenas foi ela pintada com cores novas para sa­tisfazer a moda diferente que o fim da Guerra Mundial trouxera. A única decep­ção que tiveram os estado-novistas com a “reconstitucionalização” foi o general Du­tra. Pois escolhido para presidente, como sendo o perfeito sucessor de Vargas — não fosse ele o Condestável do Estado Novo, o seu braço direito e a sua garantia no po­der? — o General se revelou surpreenden­temente um apaixonado da Constituição, um soldado devotado da democracia, um crente na lei e na liberdade. Por isso mes­mo eles se declararam “traídos” e trata­ram de remediar o erro elegendo para o segundo qüinqüênio o próprio Vargas, que nada sofrera, nada pagara e, como se viu depois, nada aprendera. Aliás, ninguém aprendera.

Isto é história recentíssima, que ainda devia estar na memória de todos, mas bra­sileiro é povo sem memória. E nesta hora de alegria e esperança, não me importo de fazer o papel daquele escravo que acom­panhava o triunfador romano no seu car­ro para lhe lembrar de vez em quando: Cave ne cadas! [2] Sim, como quem bate em madeira, quando a sorte parece boa de­mais, tenho medo de me entregar demais ao otimismo. Foi tudo tão de repente! A gente já reuniu toda a sua coragem e es­toicismo para enfrentar as agonias e a sangueira de uma guerra civil — pois pa­recia não haver outra saída senão a luta, para o cerco de vergonha e desespero a que nos acuavam os gângsteres usurpado­res do poder. O motim dos marinheiros parecia o último ponto, depois da retumbância pré-fabricada do comício de 13 de março: tudo tão perfeitamente nazista, a pelegada infrene comandando a função, a multidão adrede organizada uivando ao compasso do palanque, os oradores repe­tindo as mentiras primárias, as astúcias de algibeira, os slogans de boletim — e o moço bilionário, o rei dos latifúndios, se proclamando o segundo pai dos pobres e o fundador da era nova! Tudo ao mesmo tempo tão Fidel e tão Perón, tão Jimenez, tão Stroessner, que eles só faltavam ber­rar em castelhano para dar cor local. Era como um vil pesadelo, pardo e melancó­lico — e de repente a gente acordou para um dia claro, para um céu brilhante. Veio a linda proclamação do governador Ma­galhães Pinto — Deus o abençoe! — e as proclamações dos generais de Minas e São Paulo e tudo o mais numa cascata triun­fante — como um toque de clarim de­pois do outro, durante uma carga de ca­valaria!

Agora o novo presidente da República (com que gosto se vê a reabilitação desse título!) está empossado, juramentado, governando. Aplaudido e apoiado pelos de­mocratas e patriotas, incensado pela grita dos aderentes, dos solidários incondicio­nais a todos os governos; é de ver a ânsia com que eles dão depoimento, o fulgor com que proclamam as suas esperanças, o destemor sem jaça com que se guardam ao vencedor. E dá vontade de explicar ao cordão dos lisonjeiros e oportunistas pro­fissionais que eles estão muito enganados. Que tudo isso que eles dizem do marechal Castello Branco, por simples vício de adu­lar, pensando que é mentira — é verdade mesmo! Eles elogiariam freneticamente qualquer um que subisse ao poder, chama­riam de ínclito, nobre estadista e dono de excelsas virtudes cívicas até Brizola ou Ju­rema [3], se os vissem com a faixa presiden­cial — mas o marechal é mesmo tudo isso que eles proclamam. Ínclito, e honesto, e austero, e talentoso, e culto, e dono de to­das as virtudes particulares e cívicas. É este o nosso grande trunfo. Desta vez não nos deixamos ludibriar, não vamos per­der a revolução. Desta vez as Forças Ar­madas vão completar a obra começada, com um general de verdade no comando, escudado no Ato Institucional que lhe dá os poderes indispensáveis à obra de rege­neração. Dele esperamos os que outros têm prometido e não fazem: moralidade, jus­tiça, honestidade, trabalho, democracia — em uma palavra: governo.

Dele não temos a recear que os poderes excepcionais lhe subam à cabeça e que nenhuma escura noite ditatorial vá cair sobre nós, com os presídios cheios de pre­sos políticos, sem inquérito nem processo, a opinião sufocada, a censura nos jornais e emissoras. O seu combate aos comunis­tas e demais conspiradores vai ser às cla­ras, pela letra da lei, à sombra da toga dos juízes. Quem tiver crime paga — e para os crimes há definições específicas nos códigos e nas leis de segurança nacio­nal.

Disso temos garantia prévia, nas pró­prias palavras do presidente, no seu dis­curso de posse, pois ele, como bom demo­crata, achou que nunca é cedo demais para tranquilizar a consciência livre do país; e assim enfaticamente afirmou o marechal Castello que o combate ao comu­nismo e aos malefícios da extrema esquer­da jamais lhe servirão de pretexto para o favorecimento de uma extrema direita reacionária.

Amém. Amém. Amém.

E governo haja, presidente. Governo para todos os brasileiros, governo com tu­do que, de bonito e seguro e tranquilo e honesto e feliz esta palavra significa, quando tem a garanti-la um democrata e um homem de bem.

[1] Na Alemanha, líder de província no regime nazista.

[2] “Cuidado para não caíres” era a expressão que, durante a cerimônia do triunfo, um escravo cochichava ao general vitorioso para que não se ensorbecesse. Fonte: RÓNAI, Paulo. Não perca o seu latim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

[3] Abelardo Jurema (1914-1999) foi ministro da Justiça do governo João Goulart.


Publicado na revista O Cruzeiro, em 28.05.1964