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A lista – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 08.05.1964 / Acervo Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 08.05.1964 / Acervo Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens de angústia
A lista
C.D.A

– Como é, o seu nome está na lista?

– Claro, e com muita honra. Na lista dos que lutam por um Brasil melhor.

– Não é essa. A outra.

– Que outra?

– A nova lista de cassação de mandatos e de direitos políticos.

– Não tem lista nenhuma. Isso é onda, você não vê logo?

– Um major que mora perto lá de casa me garantiu que tem, e que é muito comprida, mas ainda não está completa.

– Conversa. Um coronel primo de outro do CSN me garantiu que a única lista em estudo é a de promoções.

– É capaz de haver duas listas, então.

– Pois eu não estou em nenhuma das duas. Não sou militar, logo não posso ser promovido, embora me orgulhe do meu certificado de reservista de terceira categoria. Não sou comunista nem corrupto, logo não posso ser cassado, com esse, nem caçado com cê cedilha.

– Ouvi que suas atitudes antes de 1º de abril…

– Que atitudes? Só tenho uma atitude na vida: servir à pátria. Nem é atitude, está no sangue.

– Bem, não duvido, mas parece que notaram sua presença no comício das reformas.

– Fui como observador. É preciso estar vigilante em defesa da democracia, e lá é que a palavra a ameaça.

– Empunhando uma faixa.

– Ah, sim. Para ajudar estivador, chamuscado por uma tocha da Petrobras. Se eu não lhe arrebatasse o pano (nem sei o que estava escrito), o coitado virava churrasco.

– Quer dizer que está tranquilo. Assim é que é bom.

– Tranquilo, tranquilo, propriamente não. A Assembleia anda nervosa, você sabe.

– Nervosa como?

– Querendo se cassar uns aos outros. A salvação é a falta de quorum na hora de votar. Tem dias em que um grupo está por baixo, no dia seguinte é o grupo contrário que perde de 15 a 7. Quando chega um capitão trazendo um envelope para o presidente, a sessão para e todos se entreolham, mais brancos do que o envelope. Às vezes quem se anuncia é um civil, mas a gente fareja em torno dele a aura de general. O presidente assume ar misterioso, diz que não é nada, simples convite para a solenidade. Nunca vi tanta solenidade, tanto convite. Aliás, não perco nenhuma. Viu minha fotografia em Ouro Preto, no 21 de Abril?

– Ótima. Da sacada da Casa da Baronesa, aplaudindo o discurso presidencial.

– Não. Aquele é um tipo enxerido, que se parece muito comigo; entrou no meu lugar, furando a comitiva. Eu fiquei lá em baixo, como qualquer do povo, bem perto da estátua de Tiradentes. Mas também bati minhas palminhas, é lógico. Mandei ampliar a foto, vê-se perfeitamente que sou eu, meu bigode, meus óculos. A outra foto, a do comício, é apenas um equívoco, uma falta de sorte.

– Então, a lista…

– Não me fale mais em lista!

– A do Brasil melhor.

– Nenhuma! Corto relações!

Publicado no jornal Correio da Manhã, em 08.05.1964 / Acervo Biblioteca Nacional

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , ,