Você está aqui:   Home  /  Blog  /  A.F.L. – por Carlos Drummond de Andrade

A.F.L. – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 18.11.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 18.11.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens em ouro
A.F.L.
C.D.A

Começo a acreditar que Antônio Francisco Lisboa não tenha jamais existido.

Existiu foi uma angústia em forma de gente, erran­do longo tempo nas estra­das do ouro.

E essa angústia era re­morso de crimes gerais, aceitação da carga de pe­cado e miséria, ânsia de resgatá-los por um sacrifí­cio diferente de todos.

Angústia que comia e be­bia do fino, para esquecer e para fortificar a consciência do drama.

Cantava e ria em casas de mulheres da rua do Carrapicho, em Vila Rica.

Batia nos escravos, revi­dava o deboche de milita­res — depois batucava nos criouléus.

Chamava sobre si as doenças, misturando-as e confundindo-as de tal mo­do que um físico poderia dizer: Não é esta ou aque­la, mas A Doença.

E torcida, curvada, ajoe­lhada mesmo quando não estava rezando, essa angús­tia cobria os vales com sua ira e sua risada.

Montada no burrinho, serra acima serra abaixo, a noite não é mais noturna que seu capote noturnal, de gola em pé e cabeção, sob o chapelão de abas avejônicas.

Lá vai a angústia caval­gando entre a opressão, o medo e o silêncio das mi­nas, tão áridas de tudo que não seja cobiça e lágrimas.

Agora se embriaga de cardina, precursor do áci­do lisérgico, servido pelas mãos rústicas de Hele­na, antepassada de Aldous Huxley.

Adquire a visão deslum­brada.

Aproveita a gase do ama­nhecer e os entretons do crepúsculo para entrar dissimulada nas igrejas.

As igrejas vazias de adorno, plantadas no chão de finta e sonegação.

As pobres igrejas que es­peram ser consoladas, para por sua vez consolarem.

E a angústia arma retá­bulos, modela a concha dos púlpitos, arranca da pedra as imagens, compõe a teo­ria musical de anjos e ar­canjos em revoada.

Baixa ao Purgatório e queima entre seres de braço implorante, corre ao An­tigo Testamento e convoca os doze profetas trágicos para a assembleia ao luar.

Bota um cachorrinho fiscalizando o mar de Tiberíades, e traça um ritmo curvilíneo para as açucenas assistirem à gravação das chagas em São Francisco, como se no seu balanceio aspirassem também a ser implantadas nas mãos do santo.

Pois suas próprias mãos trazem a marca de outra cruel visita, e seria doce redimi-las por um milagre de flor.

Mas a angústia não tem tempo de pensar em exí­lio senão que todo tempo é tempo de criar, e pouco para o muito.

E até na velhice, no de­samparo e no furto do jor­nal devido, criar e criar sempre, e imaginar a criação.

A dor figurada no Cristo é dor mesmo, em sua carne amarrada à coluna de desesperança.

A angústia radiosa vagueia e pousa na expectativa dos convidados à Ceia, no grotesco dos centuriões, no teatro esparso da Paixão que sobe o morro.

Nos santos, nos frontis­pícios e nos lavatórios rendilhados se encarna, por um ato de dolorida doação.

As igrejas foram afinal esculpidas ou desenhadas, a luz invadiu o ouro das madeiras e acordou a esteatita, para cantarem a glória do Senhor na partitura dos mestres mineiros.

E o que era poder no tempo virou pó. O que era riqueza nos abismos virou pó. A máquina da injustiça recolheu-se ao nada.

E a própria angústia, cumprida sua missão, se desfez sob divinos pés, res­tando só o prodígio de suas obras, leve e grave, banha­do pelo ar das serranias.

Agora sei que Antônio Francisco Lisboa era o no­me dessa angústia em for­ma tosca de gente, e que artista não existiu assim chamado, mas um funcio­nário de Deus.

Publicado no jornal Correio da Manhã, em 18 de novembro de 1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , ,