1º Caderno, Imagens em ouro
A.F.L.
C.D.A
Começo a acreditar que Antônio Francisco Lisboa não tenha jamais existido.
Existiu foi uma angústia em forma de gente, errando longo tempo nas estradas do ouro.
E essa angústia era remorso de crimes gerais, aceitação da carga de pecado e miséria, ânsia de resgatá-los por um sacrifício diferente de todos.
Angústia que comia e bebia do fino, para esquecer e para fortificar a consciência do drama.
Cantava e ria em casas de mulheres da rua do Carrapicho, em Vila Rica.
Batia nos escravos, revidava o deboche de militares — depois batucava nos criouléus.
Chamava sobre si as doenças, misturando-as e confundindo-as de tal modo que um físico poderia dizer: Não é esta ou aquela, mas A Doença.
E torcida, curvada, ajoelhada mesmo quando não estava rezando, essa angústia cobria os vales com sua ira e sua risada.
Montada no burrinho, serra acima serra abaixo, a noite não é mais noturna que seu capote noturnal, de gola em pé e cabeção, sob o chapelão de abas avejônicas.
Lá vai a angústia cavalgando entre a opressão, o medo e o silêncio das minas, tão áridas de tudo que não seja cobiça e lágrimas.
Agora se embriaga de cardina, precursor do ácido lisérgico, servido pelas mãos rústicas de Helena, antepassada de Aldous Huxley.
Adquire a visão deslumbrada.
Aproveita a gase do amanhecer e os entretons do crepúsculo para entrar dissimulada nas igrejas.
As igrejas vazias de adorno, plantadas no chão de finta e sonegação.
As pobres igrejas que esperam ser consoladas, para por sua vez consolarem.
E a angústia arma retábulos, modela a concha dos púlpitos, arranca da pedra as imagens, compõe a teoria musical de anjos e arcanjos em revoada.
Baixa ao Purgatório e queima entre seres de braço implorante, corre ao Antigo Testamento e convoca os doze profetas trágicos para a assembleia ao luar.
Bota um cachorrinho fiscalizando o mar de Tiberíades, e traça um ritmo curvilíneo para as açucenas assistirem à gravação das chagas em São Francisco, como se no seu balanceio aspirassem também a ser implantadas nas mãos do santo.
Pois suas próprias mãos trazem a marca de outra cruel visita, e seria doce redimi-las por um milagre de flor.
Mas a angústia não tem tempo de pensar em exílio senão que todo tempo é tempo de criar, e pouco para o muito.
E até na velhice, no desamparo e no furto do jornal devido, criar e criar sempre, e imaginar a criação.
A dor figurada no Cristo é dor mesmo, em sua carne amarrada à coluna de desesperança.
A angústia radiosa vagueia e pousa na expectativa dos convidados à Ceia, no grotesco dos centuriões, no teatro esparso da Paixão que sobe o morro.
Nos santos, nos frontispícios e nos lavatórios rendilhados se encarna, por um ato de dolorida doação.
As igrejas foram afinal esculpidas ou desenhadas, a luz invadiu o ouro das madeiras e acordou a esteatita, para cantarem a glória do Senhor na partitura dos mestres mineiros.
E o que era poder no tempo virou pó. O que era riqueza nos abismos virou pó. A máquina da injustiça recolheu-se ao nada.
E a própria angústia, cumprida sua missão, se desfez sob divinos pés, restando só o prodígio de suas obras, leve e grave, banhado pelo ar das serranias.
Agora sei que Antônio Francisco Lisboa era o nome dessa angústia em forma tosca de gente, e que artista não existiu assim chamado, mas um funcionário de Deus.
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Publicado no jornal Correio da Manhã, em 18 de novembro de 1964