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Veranico – por Carlos Drummond de Andrade

 

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Veranico

C.D.A

Compadre:

Se quer aproveitar o ve­ranico do Rio, mexa-se. Tudo muda tão depressa que se você demorar en­contrará aqui o outono ou mesmo o inverno. Como na Inglaterra, onde se conta que o povo fica feliz quan­do o verão cai num domingo. O que lhe posso dizer é que a praia voltou a ser a praia, isto é, o me­lhor lugar fora do Rio (e do mundo) que o Rio tem.

Do lado de cá da areia, perdemos os lotações, ou por outra, demos-lhos de presente à Zona Norte. Faziam um mal danado à Zona Sul, segundo as autoridades do trânsito; pois então que o façam agora àquela outra parte cidade, para onde foram mandados. O saudoso lema “De pé, pelo Brasil”, nunca teve maior popularidade, com a variante “A pé, pelo Brasil”, adotada agora pelos hedonistas que se davam ao luxo inconcebível de viajar sentados no lotação. Mas se você faz questão de proteger o seu reumatismo, cedo-lhe mi­nha cadeira de arruar, comprada no Montmartre Jorge; traga dois camaradas do sítio e terá a mais gentil, espetacular e oportuna condução às vésperas do IV Centenário do Rio de Janeiro.

Não aprovo é sua inten­ção de visitar o Museu da República, a fim de localizar troféus de seus avós republicanos históricos. Para que? Vai pertur­bar. Imagino você entrando numa sala, na suposição de encontrar o escri­tor Josué Montello, diretor do estabelecimento, e esbarrando com o dr. João Goulart, presidente da República. Sim, porque s. exa. resolveu transferir-se para o referido Museu, não se sabe se em caráter provisório ou irrevogável. Altas conveniências táticas, talvez: sendo o mu­seu uma casa de cultura, ali quedará a salvo da maioria de seus cumpinchas e poderá fazer aquilo que todos desejaríamos que ele fizesse, ao menos nos domingos, e que ain­da não teve jeito de começar: presidir.

Caso o lugar não prove bem, é de crer que ele se mande para a Casa de Rui Barbosa, depois para o Instituto Nacional do Livro, em seguida para a Reitoria da Universidade do Brasil, mais tarde para o Serviço Nacional de Teatro, Instituto Osval­do Cruz, Fundação Getulio Vargas, IBECC, IBGE, Conselho Nacional de Cultura, Academia Brasileira de Letras, Cinema Educativo etc. etc. E se as reformas de estrutura não vierem, compadre, não culpe só as forças retró­gradas do latifúndio e as forças espoliativas do ca­pital internacional: será também por falta de imóvel estruturalmente ade­quado ao serviço do reformador.

A novidade é que o nos­so futebol passará a ser jogado em primeira e em segunda classe, com o clu­be classificado em último lugar do campeonato, na primeira, baixando à segunda, enquanto sobe para aquela o clube campeão desta. Sistema que inspirará a todos os clubes e jo­gadores o violento desejo de manter a posição alta ou de conquistá-la. É possível que os campeonatos passem a ser decididos a metralhadora. De qualquer modo, e sem intenção ne­nhuma de apelar para essa arma de guerra, quem sabe se não daria certo classificar também os nossos partidos e os nossos políticos de primeira e segunda divisão, com aces­so e retrocesso? Quando o compadre vier, conversa­remos sobre, na praia.

Publicado no Correio da Manhã, em 4/3/64 / Acervo da Biblioteca Nacional