1º Caderno, Imagens dialogais
A discoteca
C.D.A
Com a emoção na voz, como se contasse a amputação de um de um braço, ele me comunicou pelo telefone que vendera a sua discoteca. Discoteca preciosa, especializada: levara 30 anos para formá-la. Todos a admiram e invejam.
— Ah, que pena! Dói pensar que tudo isso será dispersado ou ficará escondido em mão de colecionador ciumento.
— Não vendi a particular. Vendi ao governo.
— Ainda bem. Então pode exigir do governo que zele pelo acervo, tenha carinho com as peças raras, faça a coleção acessível a quem deseje consultá-la.
— Tudo isso está combinado. Não há perigo. Mas é um absurdo!
— Absurdo o quê?
— O preço que eles ofereceram.
— Pode-se saber quanto?
— 25 milhões.
— Pelo que sei de sua discoteca, acho que ela vale isso.
— Valer vale muito mais, a questão é que eu nunca tive tanto dinheiro assim na vida!
— Ora, deixe disso. Nunca teve mais vai ter. Nem é tanto assim, meu caro. Não dá para um apartamento moderno, cheio de bossas, na zona sul…
— E para que eu vou querer um apartamento desses?
— Bem, falei para dar ideia do valor relativo do dinheiro. Certamente você vai aplicá-lo em algum investimento seguro.
— Eu? Não sei ganhar dinheiro. Só sei perder.
— Então não faça nada, isto é, perca menos, comprando letras de câmbio, que dizem ser a maneira mais agradável de perder pouco em 180 dias.
— Vários sujeitos já me propuseram negócio.
— Mas eu sei qual o negócio que você vai fazer. Vai formar outra discoteca.
— Exato. E muito melhor do que a primeira, com a experiência que tenho.
— Duvido. E aquelas gravações antiquérrimas, raríssimas, que só você possuía? Qual é o doido que cederá a você aquilo que você mesmo, cobra no assunto, valorizou?
— É verdade, mas pelo menos tiro cópia de todas as gravações.
— Mas você é desses que amam a espiritualidade e a materialidade da coisa, dos que olham com sensualidade para o objeto. Disco é uma coisa, fita magnética é outra. Retrato de mulher não vale a presença física da mulher. Ou vale?
— De fato, eu gosto de pegar, de alisar a capa, de ver a etiqueta…
— Vai gastar muito mais de 25 milhões e recupera o seu bem.
— Sabe que mais? Não recebo dinheiro nenhum. Vou é dar a discoteca.
— Você está louco.
— Como é que posso vender os discos se tem uns que me foram oferecidos?
— Percebi. No fundo você está querendo é desmanchar o negócio.
— E é mesmo. Não estou nada satisfeito com essa operação. Depois que o Costinha saiu (o Costinha é quem fechou o negócio, em nome do governo) eu saí também, fui à mercearia e comprei seis garrafas de uísque.
— Para celebrar?
— Para esquecer. Como é que eu vou viver sem a minha discoteca? Como pude ter essa ideia? Me prenda, por favor, me esconda num subterrâneo, não deixe eu consumar uma besteira dessas!
…
Publicado no jornal Correio da Manhã, em 13 de dezembro de 1964