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A discoteca – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 13.12.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 13.12.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens dialogais
A discoteca
C.D.A

Com a emoção na voz, como se contasse a amputação de um de um braço, ele me comunicou pelo telefone que vendera a sua discoteca. Discoteca preciosa, especializada: levara 30 anos para formá-la. Todos a admiram e invejam.

— Ah, que pena! Dói pensar que tudo isso será dispersado ou ficará escondido em mão de colecionador ciumento.

— Não vendi a particular. Vendi ao governo.

— Ainda bem. Então pode exigir do governo que zele pelo acervo, tenha carinho com as peças raras, faça a coleção acessível a quem deseje consultá-la.

— Tudo isso está combinado. Não há perigo. Mas é um absurdo!

— Absurdo o quê?

— O preço que eles ofereceram.

— Pode-se saber quanto?

— 25 milhões.

— Pelo que sei de sua discoteca, acho que ela vale isso.

— Valer vale muito mais, a questão é que eu nunca tive tanto dinheiro assim na vida!

— Ora, deixe disso. Nunca teve mais vai ter. Nem é tanto assim, meu caro. Não dá para um aparta­mento moderno, cheio de bossas, na zona sul…

—    E para que eu vou querer um apartamento desses?

—  Bem, falei para dar ideia do valor relativo do dinheiro. Certamente você vai aplicá-lo em algum in­vestimento seguro.

—   Eu? Não sei ganhar dinheiro. Só sei perder.

—   Então não faça nada, isto é, perca menos, com­prando letras de câmbio, que dizem ser a maneira mais agradável de perder pouco em 180 dias.

—  Vários sujeitos já me propuseram negócio.

—  Mas eu sei qual o ne­gócio que você vai fazer. Vai formar outra discoteca.

—  Exato. E muito me­lhor do que a primeira, com a experiência que tenho.

—  Duvido. E aquelas gravações antiquérrimas, raríssimas, que só você possuía? Qual é o doido que cederá a você aquilo que você mesmo, cobra no assunto, valorizou?

—   É verdade, mas pelo menos tiro cópia de todas as gravações.

—   Mas você é desses que amam a espiritualidade e a materialidade da coisa, dos que olham com sensualidade para o objeto. Disco é uma coisa, fita magnética é outra. Retrato de mulher não vale a pre­sença física da mulher. Ou vale?

—  De fato, eu gosto de pegar, de alisar a capa, de ver a etiqueta…

—  Vai gastar muito mais de 25 milhões e recupera o seu bem.

—  Sabe que mais? Não recebo dinheiro nenhum. Vou é dar a discoteca.

—  Você está louco.

— Como é que posso vender os discos se tem uns que me foram ofere­cidos?

— Percebi. No fundo vo­cê está querendo é des­manchar o negócio.

—    E é mesmo. Não es­tou nada satisfeito com es­sa operação. Depois que o Costinha saiu (o Costinha é quem fechou o negócio, em nome do governo) eu saí também, fui à mercea­ria e comprei seis garra­fas de uísque.

—   Para celebrar?

—   Para esquecer. Como é que eu vou viver sem a minha discoteca? Como pude ter essa ideia? Me prenda, por favor, me es­conda num subterrâneo, não deixe eu consumar uma besteira dessas!

Publicado no jornal Correio da Manhã, em 13 de dezembro de 1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , ,