Última Página
A eterna jeune fille
Rachel de Queiroz
Nas conversas e na literatura, o pessoal anglo-saxônico quando quer falar em malícia, no eterno frívolo feminino, em soltura de costumes, em pecados, senão da carne, pelo menos da pele — diz que aquilo são ideias francesas, hábitos franceses. Acho que já citei uma vez certa frase da minha querida Charlotte Brontë, no Jane Eyre, quando, referindo-se à jovem Adèle, diz, com toda gravidade, “que uma boa educação inglesa corrigiu-a dos seus ‘defeitos franceses’” — her french defects… E que defeitos franceses são esses? A frivolidade, a vaidade, o imoderado amor às toilettes caras e às companhias masculinas… O fato é que tanto a nossa velha Charlotte, como muita gente de hoje em dia, parece que não aprenderam bem a discernir a diferença que existe entre fille e jeune fille. Porque se a fille realmente existe e confirma a sua legenda, e dança nua nos cabarés da Place Pigalle, e canta cantigas apimentadas nos music-halls, e faz trottoir em boulevard, e é exportada como cantora girl, ou simplesmente mulher bonita e picante para todos os lugares supostamente alegres do mundo — é verdade também que, paralelamente, continua a existir na própria cidade de Paris a jeune fille de família, a neta de Camille e Madeleine dos livrinhos da Condessa de Ségur —, sim, a fillete-bien-élevée dos compêndios de boas maneiras dos nossos tempos de menina.
E se o estrangeiro de passagem jamais as vê é porque as jeune filles pouco se mostram. Precisam ser procuradas, espreitadas. A menina de colégio, de uniforme azul afogado e comprido, que desce os seis andares do apartamento todas as manhãs e vai para a escola em companhia da maman, da bonne ou do irmão mais velho, porque não lhe consentem que ande só pelas ruas — sim, ainda há disso por lá. A mocinha de vestido branco, que está sempre de manual na mão nas missas de domingos, em companhia dos seus. Vá-se a uma matinê de teatro, não para ver as peças de boulevard, é claro, mas uma dessas operetas açucaradas, nas quais a virtude triunfa sempre, como a Danseuse aux étoiles, que levou dois anos no Mogador; ou vá-se mesmo ao teatro clássico no Palais Royal ou no Odéon: lá estará, incorporada, a família francesa — e dentro dela, ocupando o seu lugar imutável, a jeune fille atenta, modesta, aparentemente recém-saída de um romance de Bordeaux ou de Gyp — tal como era há cinquenta anos atrás.
Ou vá-se em tardes de feriado às confeitarias da Place de la République, ver as famílias modestas merendando sorvetes e pâtisseries: não faltarão as crianças turbulentas levando beliscões maternos — e, ainda e sempre, a jeune fille que toma sagement o seu gelado, namorando de longe o moço da calçada, enquanto a maman, obesa e vigilante, põe o rabo do olho no rapaz para ver se ele é convenable; pois que lá, pior do que aqui, a dificuldade dos casamentos é enorme e só Deus sabe o que padece uma pobre mãe pequeno-burguesa para proporcionar à sua garota um lar honesto e um bom marido.
Nos trens de subúrbio, nos seus liceus, nos cortejos de casamento, nas praias de banho modestas, nos jardins do Luxemburgo ou do Jardim das Plantas, procurem-na, que hão de encontrá-la. Vigiada, submissa, inocente, acreditando ainda que o casamento é uma prodição e o seu destino; ignorando totalmente as suas irmãs de suéter preto, cabelo liso e sujo, cigarro à boca, que povoam os cafés de Saint-Germain — aquelas falsas existencialistas de fala rouca e olhos sonolentos, que o turista inexperiente toma pela verdadeira jeune fille francesa. E volta o viajante para a sua terra pensando horrores da perdição daquela mocidade, sem saber que só viu a mercadoria de amostra, manuseada e gasta, para uso da indústria do turismo. Que as genuínas raparigas francesas, as moças de família que os moços da terra levam à mairie ou à igreja, fazendo delas sua esposa e sua sócia, essas ninguém as vê senão depois que engordam e envelhecem, na figura da patronne da pequena loja de armarinho ou de tintureiro, ou da senhoria atrabiliária e prodigiosamente econômica, que, para ajudar o marido mutilado da guerra ou desempregado, aluga a casal distinto o quarto mobiliado, com direito à chauffage e tout le confort moderne.
…
Publicado na revista O Cruzeiro, em 31 de outubro de 1964