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Brasil, ontem e hoje
Rachel de Queiroz
Ora, afinal parece que as coisas estão tomando jeito. Mesmo com o dólar tão caro, mesmo com a vida tão cara. O povo já se convenceu de que, de agora em diante, há alguém tomando conta, se esforçando, trabalhando dia e noite, quebrando a cabeça para acertar. Alguém só, não. Toda uma numerosa equipe sincronizada, obedecendo a um comando único e empenhada em atingir os mesmos fins.
Em cada setor da vida do país se sente esse esforço: acertar, corrigir, pôr a casa em ordem. Podem errar — muitos erram. Mas errar sem malícia, sem fraude e sem mentiras, disposto a começar de novo logo que se conheça o erro — esse jeito de errar é quase acertar.
Muitos se queixam da lentidão das providências. A lei do inquilinato, por exemplo. Quantos meses se capricha nela, prorrogando uma vez atrás de outra aquele decreto demagógico e injusto da ditadura. A lei eleitoral, o estatuto da terra, tantas outras — para muita gente anda tudo devagar demais, assim, só daqui a cem anos.
Ah, quantas vezes será preciso repetir que os homens da revolução de 31 de março não encontraram um país funcionando — mas o caos, a indisciplina, a desordem, o saque, a terra arrasada?
E como explicar mais uma vez que não havia uma organização premeditada para se apoderar do governo, que não havia nenhum assalto ou planificação de tomar o poder, preparado com antecedência — que o desejo de todos os democratas inimigos do janguismo, principalmente os homens responsáveis pelo movimento, era não se verem obrigados a fazer revolução nenhuma, manter a ordem legal até onde fosse humanamente possível, esperar, mesmo contra toda a esperança, que afinal chegassem as eleições, e a libertação do país por intermédio do voto?
Só a pressão intolerável da insanidade mais criminosa, só o caminho aberto à guerra civil tomado pelos irresponsáveis que detinham o poder, só a provocação da demagogia mais cínica, a institucionalização da desordem, da subversão, da greve política, da indisciplina militar, do motim, a cubanização acelerada do país — é que desencadearam o movimento restaurador revolucionário.
O desejo, o voto, a esperança de todos, era que a paciência pudesse ser alongada até 1965; que os louquinhos pudessem ser contidos dentro de algum limite, e não se impusesse irredutivelmente a interrupção da ordem constitucional, a deposição do presidente em exercício — o quadro que caracterizou a revolução. Era esse o desejo e o voto de todos os militares que chefiaram o movimento. Dos líderes civis que participaram dessa chefia. De todo o povo — o povo brasileiro, que, na sua imensa maioria, apoiou a revolução de 31 de março e, pela primeira vez, respirou aliviado, quando acordou do pesadelo de três anos.
Mas o grupo no poder a verdade é que caiu de podre. Amadureceu, ficou passado, bichou e caiu. Bastou uma sacudidela na árvore. Bastou deslocar tropas, publicar alguns manifestos e ordens do dia e eles, que blasonavam do apoio do povo, fugiram sem ensaiar sequer uma resistência simbólica.
E, inquilinos infiéis, deixaram a casa saqueada, as paredes nuas, as alfaias destruídas, as reservas exaustas, o pessoal corrompido ou desmoralizado.
Foi isso o que o governo revolucionário encontrou. Como explicar, pela milésima vez, que teremos de começar tudo de novo? Da estaca zero, recomeçar tudo? As dívidas a pagar. Internamente a produção a restaurar, em plena anarquia que estava, com as greves políticas, com a pelegagem ditando ukases [1], o programa de paralisação em pleno rendimento. A agricultura abandonada, o terror reinando nos campos. O ensino entregue à camarilha comuno-fidelista que era a mais atrevida e adiantada tropa de choque da insurreição no país, tomando conta principalmente desse setor acima de todos importante, que é o setor cultural. O contrabando institucionalizado. A advocacia administrativa como a norma burocrática mais irredutível.
Para que insistir no quadro que todos conhecem? O fato é que, a estas alturas, só gritam ainda os que se sentem cortados na bolsa gorda, e alguns poucos idealistas descontentes, que merecem respeito, sim, mas que não podem ser ouvidos já que se recusam a aceitar os compromissos da realidade.
[1] Qualquer ordem ou proclamação de uma autoridade absoluta. Na Rússia imperial, era a proclamação do csar, que tinha a força de uma lei.
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Publicado na revista O Cruzeiro, em 10 de outubro de 1964