Nos dias 4 e 6 de dezembro de 1964, Vinicius de Moraes escreveu duas crônicas em sua coluna “Bossa Nova”, no Diário Carioca, sobre Baden Powell. Exaltava o primeiro disco do parceiro gravado na França, “Le Monde Musical de Baden”, início de uma vitoriosa carreira internacional.
Vinicius aproveitava para contar histórias vividas com Baden nos primeiros momentos em que o violonista tentava a sorte em Paris, como a temporada no restaurante A Feijoada. São histórias saborosas, divertidas e também comoventes.
Baden teve em 1964 um ano especial de sua vida, por causa do primeiro LP europeu e também graças ao sucesso que músicas suas com Vinicius fizeram no Brasil, casos de “Berimbau” e “Consolação”.
‘Le Monde Musical de Baden’
Não foram fáceis os inícios de meu parceiro Baden Powell em Paris. O cabrochinho aterrou por lá “no peito”, com a sua Heloísa na mão direita e o seu “Di Giorgio” na esquerda, só sabendo dizer “oui” (pois não sabe dizer “não” a ninguém): e assim mesmo mal. Eu estava chegando ao meu posto junto à Unesco, via Roma, de maneira que uma noite nos encontramos no Hotel Montaigne, ao qual sou fiel há muitos anos. E foi aquele celebrar sem conta.
Depois começou a via-crúcis de mostrá-lo aos donos de fábrica, chefes de orquestra e demais pessoal do “métier” que pudesse dar-lhe o bom empurrão. Esse anjo que é Michel Simon (e que hoje acrescentou, para se diferençar do ator, e por amor a este pais, o nome Brésil ao seu sobrenome, devidamente hifenizado) providenciou em seu apartamento uma noitada de violão, à qual estava presente o cantor Jean Sablon, e de que resultou um convite para um programa de televisão. Lá fomos nós de manhã bem cedo para o estúdio de Montmartre, de onde saímos às 7 da noite. Aí por volta das 2 da tarde o diretor do programa nos fez o sinal convencionado e mandamos uma brasinha com “Garota de Ipanema”, enquanto uma jovem estudante brasileira — e por sinal uma graça – descia uma rampa que imitava os mosaicos de Copacabana fazendo uns bamboleios de samba. Daí em diante passei a acreditar mais na nossa TV.
O programa foi visto e Nicole Barclay, ex-mulher de Eddy Barclay (dos discos do mesmo nome), que fundou uma etiqueta nova, quis ouvir Baden. Lá fomos nós de novo. Mas já aí a pessoa que nos levou queria entrar de “intermediário”. Apresentou-me um contrato para Baden, eu o levei a um advogado amigo meu e devolvi-o não assinado. O fulano em questão queria, nada mais nada menos, que a alma do cabrochinho. Tudo. Não deixava nada para o meu parceiro. Já por essas alturas o próprio Sablon veio com uma história de ficar como empresário de Baden, vendo que ele estava mais duro do que pão de véspera. “Aguenta a mão! — disse-lhe eu. Um sofá para dormir vocês têm”. Foi quando aconteceu “A Feijoada”.
A Feijoada, creio que todo mundo já sabe, é um restaurante bastante bem bolado, no Quai de l’Hotel de Ville. A dona, uma francesa que já esteve no Brasil, país pelo qual gamou, e que é antiquarista (especialista em bonecos autômatos, de que tem uma linda coleção), ouviu Baden e perguntou-lhe se ele não queria estrear com a casa. Dava-lhe 100 francos novos por dia (mais ou menos US$ 20,00). Baden aceitou. No dia de sua estreia a casa inaugurou com nós ambos e nossas respectivas mulheres. Na semana seguinte seu nome estava, com o anúncio da casa, na Semaine de Paris. Dois meses depois via-se cada autógrafo pelas paredes do restaurante que vou lhes contar…
Depois Baden ligou-se de amizade com Sílvio Silveira, crooner da antiga orquestra do falecido Fon-Fon, que atuou na Europa muitos anos, e o simpático gaúcho articulou-se com a etiqueta Barclay – do que resultou o LP que venho de receber, o primeiro de Baden na Europa: “Le Monde Musical de Baden Powell”, com uma linda capa onde se vê o compositor ao violão numa de suas mais intensas expressões: um instantâneo realmente feliz do nosso grande artista. São doze faixas em que Baden passeia entre o popular e o erudito com aquela raça que só ele tem. Baden é um músico absolutamente visceral. O violão é um prolongamento de seus braços e tudo o que ele toca vem-lhe da carne, do sangue, das entranhas. Os pontos mais altos do LP são, para mim, o seu “Choro para Metrônomo”, uma peça de concerto, que um Segóvia, estou certo, ficaria feliz de executar; a “Bachiana”, uma composição de João Sebastião “Baden”, como eu gosto de dizer; e minha valsa “Euridice”, terna da peça “Orfeu da Conceição”.
Mas Baden está, da mesma forma, muito bem em seu “Samba Triste”, nosso “Samba em Prelúdio” (em que a voz da cantora Françoise Walch faz o contraponto) e numa transcrição sua de um Prelúdio de Bach, em que a orques-tra joga acima do motivo instrumental, dado pelo violão, uma canção que fiz ao ouvir Baden executar a peça.
Um belo LP. Para quem gosta de Baden, e de boa música, um “must” absoluto.
Publicado no Diário Carioca em 4 de dezembro de 1964
‘Le Monde Musical de Baden’ (II)
Ontem, ao reler o final de minha primeira crônica sobre o LP de Baden feito em Paris, confesso que fiquei meio encabulado. É que, depois de colocar minha valsa “Eurídice” como um dos pontos altos do disco, eu dizia: “Um belo LP. Para quem gosta de Baden; e de boa música, um ‘must’ absoluto”. Que diabo, eu posso ser vaidoso, mas nem tanto assim. Aquele “boa música” refere-se, é evidente, às qualidades de Baden como intérprete.
Essas qualidades vêm se humanizando cada vez mais. Há, neste particular, um episódio curioso. Uma noite, depois do seu trabalho na Feijoada, resolvemos ir comer um pé de porco no restaurante do mesmo nome (só que em francês) que fica no Mercado. Vínhamos traçando regularmente o nosso uísque, e lá pelas tantas eu notei que o meu parceiro estava mal à vontade, como se a alma não lhe coubesse no corpo. Depois de limparmos devidamente as falangetas .do delicado bichinho, nos mandamos para o Hotel de la Harpe, onde Baden acampava. Ou melhor, para o bar. Por aí já era manhãzinha, mas o porteiro nos arrumou uma garrafa do “divino centeio”, que começamos logo a ordenhar como competia. Eu sabia que Baden precisava falar qualquer coisa, de tal modo estava possuído do bicho-carpinteiro. E aos poucos a confidência veio. Dava-se que um empresário muito forte lhe tinha proposto agenciá-lo totalmente, à base de uma “erva” considerável, para que ele se tornasse um concertista. Baden não teria mais preocupações financeiras. Pedia-lhe, em troca, que estabelecesse um repertório erudito e começasse a estudar para valer. O resto ele, empresário, faria…
– Poeta, suplicou-me Baden. Não deixa eu ser um concertista não… Eu não quero esse troço não… Eu quero é fazer isso que eu faço, misturar popular com erudito, tocar Bach em forma de jazz, compor com você, escutar o Tonzinho, essa coisa…
Compreendi tão bem o seu temor. Um agente oferecia-lhe abrir as portas da Europa inteira para um novo Segovia… Não mais o dinheiro contadinho, a obrigação de tocar para os turistas brasileiros grossos, que, na Feijoada, de vez em quando, pediam-lhe “Babalu” ou “Saudade do Matão”, ou forçavam-no a acompanhá-lo cantando “Mamãe eu quero”. Ele teria que comprai um “robe-de-chambre”, partituras clássicas e trabalhar cinco, seis horas por dia fazendo escalas e apurando a técnica. E de repente viria a fama “erudita”, o respeito dos críticos “à clef”, o sorriso convencional dos aristocratas, o passe livre para os melhores salões da Europa, um secretário para carregar-lhe o instrumento… Sim, isso tudo viria, porque não há, no momento, dois Baden no mundo…
Meu coração se encheu de ternura por ele. Peguei a garrafa e nos servi mais duas doses. Baden compreendeu e deu-me aquele sorriso abissínio, de alívio e bem-estar. Chocamos nossos copos e bebemos. “— Santo Deus! — pensei. Ainda há gente no mundo…”
Quando saí, meio à deriva, ainda ouvia Baden no barzinho do hotel, ele o seu violão, plangendo divinamente o choro “Lamento”, de São Pixinguinha.
Publicado no Diário Carioca em 6 de dezembro de 1964