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Regeneração
Rachel de Queiroz
A conversa era a respeito das faladas grandes fortunas de certos políticos. E o moço (vinte e poucos anos, função técnica numa autarquia, rapaz sério), disse com convicção, na defesa do ex-presidente:
— Mas ele não tinha precisão de roubar para ficar rico! Só a companhia X, sua protegida especial durante o governo, deu-lhe de presente 40% das ações!
Não sei se esse tal caso será verdadeiro, mas a enormidade da afirmação está no fato de que, ao fazê-la, o rapaz acreditava sinceramente defender o homem da pecha [de] desonesto. Favorecer um grupo às custas do governo, receber como compensação de favores uma percentagem qualquer de ações da companhia — para ele é ato legítimo, inatacável, honesto!
Outra frase impressionante me disse um deputado estadual, numa viagem de barca de Niterói ao Rio. Discutia-se também a rápida e misteriosa riqueza desses homens. E o parlamentar, aceso na defesa de um dos mais falados nababos, liquidou o assunto:
— Mas ele tinha mesmo que enriquecer. Homem nenhum passa pelos cargos pelos quais ele passou — deputado, governador, ministro etc., sem fazer fortuna. É uma decorrência da carreira! Essa eu nunca esqueci: UMA DECORRÊNCIA DA CARREIRA.
Uma das palavras mais pejorativas da língua brasileira atual é crente. Crente é o boboca, o ingênuo, que acredita em trabalho, em cumprimento de dever e em honestidade. E pior ainda do que crente é o caxias, que, a exemplo do celebrado duque, pratica a disciplina, o horário, o escrúpulo profissional. E a gíria carioca ainda inventou um superlativo do caxias, que é o chatias, ou o chato crente, que é o caxias pior de todos…
Generalizou-se o conceito de que roubar do governo não é roubar. É um emprego de atividade como o comércio, a indústria ou uma profissão liberal. Aquela mãe de família do Pará, católica, de velha família dessas que se dizem tradicionais, filha e neta de homens de bem, declarava candidamente a respeito de um sobrinho:
— O Luís era mesmo um rapaz sem juízo, quase um transviado. Mas agora se corrigiu e mudou de vida. Casou, abriu escritório de contrabando, e vai indo muito bem, graças a Deus!
Havia um antigo partido político português, no tempo da monarquia, que se chamava “Regenerador”. Provavelmente, de regenerador só tinha o nome, porque isso de partidos políticos nunca procuram fazer coincidir seu nome com a realidade. Salve o caso dos abertamente fascistas e comunistas, os outros usam o nome porque acham bonito, porque tem apelo para as massas, porque está na moda, ou seja lá por que for.
Mas era de um movimento regenerador que tínhamos necessidade. A Revolução, esta nossa revolução de 31 de março, não pode se limitar a ser apenas o que foi até agora — um movimento armado que promoveu a derrubada dos corruptos do poder e a instalação de um governo decente e austero. Isso é apenas a primeira etapa. Depois tem que vir a revolução realmente regeneradora. Devolver ao país aquele ambiente anterior a isso que aí estava. No qual trabalhar não seja burrice, ser honesto não signifique ser crente, sacrificar-se pela sua terra não seja profissão de chatias.
Ensinar a esses meninos de hoje aquilo que aparentemente todo o mundo sabia nos primeiros tempos da República: que um homem, depois de ocupar altos cargos, não sai deles necessariamente rico; ao contrário, tem que sair necessariamente pobre. Como saiu Floriano. Como morreu Deodoro. E os outros que vieram em seguida. Como saiu Café Filho, que, ao ser deposto pelo golpe de 10 de novembro de [19]55, precisou que os amigos lhe arranjassem um modesto emprego numa firma particular, para que não se visse um ex-presidente passando privações!
Talvez a ideia boa fosse explicar aos meninos como é que se recolhe o dinheiro do governo; como se cobrar os impostos, dinheirinho suado de cada pobre, contribuição obrigatória de cada rico. Centavo a centavo vai se juntando — e dali, só dali — se forma aquele pecúlio público que só pode ter um destino: o uso em benefício do povo, de cujas mãos saiu.
Mostrar aos meninos o mecanismo da previdência social: os descontos mensais cobrados a todos, trabalhadores, patrões, na folha do fim do mês — e que só pode ser aplicado aos hospitais, ao pagamento de aposentadorias, de pensões, de montepios.
Fazer prédios suntuosos com o dinheiro dos Institutos de Previdência, custear festanças, sustentar afilhados, é o mesmo que roubar o remédio do doente pobre, o leito do hospital, o feijão do aposentado. Eles entenderão, moço entende depressa.
A mocidade não está corrompida; está apenas mal encaminhada e mal esclarecida. Se todo o mundo usa como verdade a impostoria. Se o senso moral se subverte, se os exemplos do bem são raros e os exemplos do mal são a regra comum, como esperar que a mocidade saiba descobrir sozinha onde é que está o certo e o direito?
Um governo que realize a democracia com perfeição, que tenha como base a justiça social, a verdade eleitoral, a austeridade dos servidores públicos; que incentive a honradez particular, o trabalho e o estudo, que dê valor à palavra do homem de bem; só um governo assim tem possibilidades de reconquistar a mocidade, convertê-la pelo exemplo, seduzi-la com as perspectivas de liderança abertas, não aos vivos, não aos espertos, não aos acordados — mas aos crentes, aos caxias. Porque então crente e caxias terá deixado de ser nome feio.
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Publicado na revista O Cruzeiro, em 18 de julho de 1964