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Uma cor – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 8.7.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 8.7.1964 / Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens redivivas
Uma cor
C.D.A

Xi, as coisas estão pretas! Exclamou o pessimista profissional. Mas João Brandão corrigiu: Não senhor, as meias é que estão pretas, as meias das mulheres.

Realmente, começam a aparecer meias pretas em pernas femininas. Que é isso? Não mais a cor de carne, clara, puxada a rósea, ou um pouquinho sobre o queimado, e confundindo-se com a própria tonalidade da pele, a que estávamos acostumados depois de pelo menos trinta anos de moda, ou seja, desde a eternidade.

Primeiro foi uma “coisa mais linda” de Ipanema que apareceu com a bossa, depois duas cavalheiras na rua México, uma garota mais no Rio Comprido, e aqui, ali, aos poucos vão enegrecendo as pernas, vai caindo a noite rendada, caindo é bem o termo, até o bico dos sapatos pretos. E vejo-me de repente em 1920, 1922, quando seria doidice mulher botar meia cor de carne, onde se viu isso? Tinha que ser preta ou senão branca, de fio de escócia, olha esse maço de revistas antigas, aí estão as elegantes do Centenário da Independência – se uma cruza imprudentemente as pernas, o que é raro mas lá um dia pode acontecer, há uma linha perturbadora em que a noite e o dia se encontram, ai! O preto, como era invocativo e buleversante naqueles tempos, ó João!

Uma dama de minhas relações participa-me que, dada a conjuntura, passará a usar meias pretas por economia e em atenção ao ministro Roberto Campos, a malha de renda é mais grossa, mais resistente, capaz de durar até a implantação da moda de meias verde-alface ou solferinas, programada talvez para a semana que vem. E sendo a mais econômica, a meia negra, negra da cor da situação econômica, pode até dar-se ao luxo de custar duas ou três vezes mais, que que tem? A economia está em que meia cor de carne não entra mais lá em casa – explicou-me a dama. Como quem tivesse proscrito e caviar do seu menu cotidiano.

O significado da nova moda-velha, não é preciso investigá-lo, recorrendo a dados de psicologia erótica ou de sociologia estética. Nem as pernas hoje entenebrecidas querem saber de explicação. Tingem-se de preto, enfaradas que estão da cor natural, que aliás era tão artificial quanto qualquer outra. A moda já não pretende provar nada, seduzir ninguém. Seria exagero supor que as pernas pretas desejam fazer-se notadas, cobiçadas. Que é hoje que chama a atenção sobre qualquer coisa, salvo a atenção de velhos observadores de cabeça baixa, como eu, que acompanham no chão o raide das formigas? O monoquíni mesmo passando a quini, ou a ni, ou a n, será que alcançaria sucesso além de quatro semanas? Ficaríamos aguardando o maiô de hidrogênio, que exibisse a alma portadora. E mesmo isso…

Publicado no jornal Correio da Manhã, em 8 de julho de 1964 / Biblioteca Nacional

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , , , ,