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A caça às feiticeiras
Rachel de Queiroz
O problema é dificílimo. Todo o mundo está de acordo em que o governo precisa identificar e punir os inimigos públicos que estavam leiloando o Brasil a essa espécie de socialismo degenerado que se convencionou chamar “comunismo internacional”; mas todo o mundo também exige que a eliminação dos focos de insurreição se faça sem se cair no erro extremo da caçada cega às feiticeiras, sem se atacar essa cidadela que é o próprio coração da democracia: a liberdade de pensamento e de palavra.
Quando se escutam os aplausos entusiásticos com que nos saúdam a imprensa e os governos de Salazar e Franco, a gente fica de orelha em pé: que é que nós estamos fazendo ou prometendo de ruim, para eles se alegrarem tanto? Será que esperam que a marcha da Revolução nos arraste a uma ditadura semelhante à deles, sem nos sabermos livrar do falso dilema — ou fascismo ou comunismo — deixando de parte a terceira posição, que é a única verdadeira — a simples democracia?
Tenho medo. O doente está grave e a operação é melindrosa. Tanto o pode salvar como acabar de matar.
E não pode ser adiada, nem torneada, nem desconversada, essa operação indispensável. É imperioso demarcar logo o limite exato, separando o que é crime e o que é direito de homem livre. Quem se provou culpado de conspiração, entendimento com o estrangeiro, desvio de dinheiros públicos para fins subversivos, preparação de luta armada, insuflamento do povo contra as instituições constitucionais, que pague o seu crime. Jornalista que incitava operários e soldados a greves políticas, à insubmissão e ao motim, esse jornalista incidiu em crime, e merece punição, é claro. Mas o jornalista que, usando da liberdade de imprensa, declarava suas convicções políticas, fossem quais fossem — como se pode prender e condenar esse homem, sem lhe cercear a mesma e sagrada liberdade de pensamento e de palavra?
Funcionário que utilizou “criminosamente o dinheiro dos contribuintes para subvencionar organizações ilegais ou promover a insurreição, cometeu crime e deve ser demitido, julgado, condenado — e com severidade. Porém se esse funcionário tem apenas “idéias subversivas”, como o punir? Ou antes, com que direito o punir?
Na hora em que se declara, seja qual for o pretexto e o momento, que ter ideias é crime, então nessa hora está tudo muito mal. Quando se exige que um cidadão, para usar dos seus direitos civis, assine um daqueles “atestados de ideologia” de malfadada memória — é sinal de que há um desequilíbrio grave na balança democrática.
Sob a alçada da justiça revolucionária só pode ser posto o fato atual, o fato concreto, o crime perpetrado. (E há uma legião enorme de candidatos à cadeia, dentro dessa faixa.) Mas ter qualquer ideia dentro da própria cabeça, seja que ideia for — isso só é crime em terras como a Rússia, a China, Cuba — ou na Espanha e no Paraguai.
Ser comunista ou acreditar que o comunismo é a solução para os problemas do mundo pode ser um erro, um engano trágico, mas não é um crime. Democraticamente não o é. Só começa a ser crime quando o cidadão abandona a simples ideologia e entra no terreno da organização revolucionária, da conspiração e da revolta.
Parece tão óbvio tudo isso. Mas tão difícil de realizar com honestidade e justiça. A grandeza da democracia coincide precisamente com a sua maior fraqueza. Na liberdade, que é o seu fundamento e a razão de sua existência, está também o seu maior risco, estão em potencialidade todos os perigos. Mas acontece que, dessa grandeza e dessa debilidade, desse risco, participa a própria natureza humana. O reconhecimento do livre arbítrio, que é a base de todos os códigos religiosos, nasce da ânsia imanente de liberdade da natureza do homem. Deus Nosso Senhor — qualquer que seja o nome sob que o invoquem — consagra essa liberdade essencial do espírito como fundamento de toda a sua justiça. Deus, em todas as religiões civilizadas, revela a verdade, mas não a impõe — deixando ao homem o direito de errar, numa demonstração de que a democracia é instituição divina, já que se baseia no inalienável livre arbítrio por Deus reconhecido.
Quando leio nos jornais que a casa de fulano de tal foi “visitada pela polícia” que, em suas buscas, apreendeu grande cópia de “literatura comunista”, tremo. Apesar de toda a minha gratidão pelo milagre que foi esta revolução, de toda a minha confiança nos homens que a chefiam — tremo. Polícia que censura livros, revolução democrática que tem medo do pensamento e faz autos de fé, assustam. Será que os agentes apreendedores são capazes de fazer a indispensável distinção entre a boçal literatura de propaganda da insurreição, fartamente distribuída pelas agências internacionais do comunismo, e a literatura propriamente dita, os livros onde o pensamento humano se entrega ao seu mais nobre exercício, que é a especulação e a discussão dos problemas eternos — sociais, morais, religiosos? Que qualificação intelectual terão os agentes de polícia que dão as buscas para fazer essa distinção sutil, mas vital?
A caça às feiticeiras é um esporte sanguinário e embriagante. Precisa muita força de alma para lhe resistir, quem tem o dever de caçar simples criminosos.
E não é ocioso lembrar que, afinal de contas, quem acabou com as bruxas e com a bruxaria não foram as fogueiras dos fanáticos; foi, ao contrário, a razão livre, o pensamento livre, o raciocínio livre dos homens —, homens livres.
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Publicado na revista O Cruzeiro, em 27.06.1964