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Relembrando princípios – por Paulo Mendes Campos

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Relembrando princípios
Paulo Mendes Campos

Em 1945 eu não era um homem, mas una nube en pantalones, como estava na versão caste­lhana do meu Maiakóvski (esse Maiakóvski, sr. co­missário, num gesto antirrevolucionário, acabou se matando). Uma nuvem carregada, batida pela venta­nia que agita os céus metafísicos, inocente, egoísta, esgarçante. Foi nebulosamente e por alto que par­ticipei do I Congresso de Escritores, realizado no mês de janeiro em São Paulo.

Execrar eu execrava a ditadura estado-novista; mas, se queria com muita candura a liberdade, não tinha, e não queria ter, boboca, a consciência do que isso representava para a responsabilidade de ser ho­mem e de pensar. Não estendia o compromisso da liberdade aos gestos da inteligência e à literatura. Achava pomposamente que a consciência do artista (ai de mim daqueles tempos) superava ou dispen­sava a consciência política. Hoje, quando sei que a liberdade é uma só, e tem de ser conquistada simul­taneamente dentro e fora de nós, compreendo em parte os descaminhos do antigo rapaz, mas não chego a perceber a raiz da frustração, que, mal se­creto até a si mesmo, fez aquele moço tão so­berbo e tão fechado em sua infelicidade particular durante os dias mais verdes de sua juventude.

Sem saber conciliar a minha crise original com a crise humana a que o Congresso de Escri­tores visava (a guerra mundial e a ditadura no Bra­sil), fui em São Paulo um delegado lastimável, mu­do, desesperançoso, mais ansioso de palavras sobre as misérias irremediáveis da condição humana do que sobre as outras, as misérias passíveis de conserto.

Eu o confesso e me penitencio. Enquanto Osó­rio Borba, por exemplo, manifestava com seu ím­peto costumeiro que “o apoliticismo é o grande vício característico dos intelectuais”, não é impos­sível que eu estivesse lá no meu canto a dar-lhe razão, recordando com simpatia uma frase inocente-do-Leblon de Julien Green: “Tout le monde se mêle de politique, sauf moi qui n’y entend rien”.1

Não fiz mais então do que bater palmas fortes e sinceras quando na sessão de encerramento se procedeu à leitura das moções aprovadas pela as­sembleia. Os muito jovens de hoje ainda não po­dem avaliar o que era aquilo. Até janeiro de 45, um rapaz como eu só tinha ouvido falar de liber­dade e democracia nos discursos cívicos de giná­sio, antes de novembro de 37. Daí, até o Congresso, prolongou-se um período torvo da mais abjeta res­trição policial feita ao pensamento e às mais sin­gelas aspirações de justiça. Por isso, a tarde de 27 de janeiro de 1945, foi uma tarde única, capaz de comover até um coração de marfim, como era o meu.

Além das moções, o Congresso redigiu uma de­claração que foi ouvida de pé por todos os parti­cipantes, lida na última sessão plenária por Dionélio Machado. Se bem me lembro, moções e decla­ração de princípios foram nos dias seguintes pu­blicadas por alguns jornais de São Paulo. Era a primeira vez que se furava ostensivamente a cen­sura dipiana2, um mês antes da famosa entrevista de José Américo3 ao Correio da Manhã.

As moções se referiam à luta contra o fascismo e aprovavam uma mensagem à FEB, acentuando o propósito dos congressistas de “defender, dentro do país, os princípios pelos quais lutam os nossos soldados na Itália”. Soldados democratas e escrito­res brigavam então na mesma linha. Já os princípios eram simplesmente três, seguidos de uma conclusão. Tenho aqui os anais do Congresso; ei-los:

“Os escritores brasileiros, conscientes de sua responsabilidade na interpretação e defesa das as­pirações do povo brasileiro, considerando necessá­ria uma definição do seu pensamento e de sua atitude em relação às questões políticas básicas do Brasil, neste momento histórico, declaram e ado­tam os seguintes princípios:

Primeiro — A legalidade democrática como ga­rantia da completa liberdade de expressão do pen­samento, da liberdade de culto, da segurança con­tra o temor da violência e do direito a uma existên­cia digna.

Segundo — O sistema do governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal, direto e secreto.

Terceiro — Só o exercício da soberania popular em todas as nações torna possível a paz e a coope­ração internacionais, assim como a independência econômica dos povos.

Conclusão — O Congresso considera urgente a necessidade de ajustar-se a organização política do Brasil aos princípios aqui enunciados, que são aqueles pelos quais se batem as forças armadas do Brasil e das Nações Unidas.

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Conclusão da conclusão — Conclua por você mesmo.

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1 Todo o mundo se mete em política, menos eu, que não entendo nada do assunto.

2 Alusão ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939 para controlar a imprensa e promover propagandas do governo Vargas.

3 José Américo de Almeida (1887-1980), autor de A bagaceira, foi ministro da Viação e Obras Públicas e do Tribunal de Contas da União (TCU) do governo Vargas. Em janeiro 1945, representou a Paraíba no Congresso Brasileiro de Escritores e em fevereiro do mesmo ano concedeu uma entrevista ao jornalista Carlos Lacerda, publicada no Correio da Manhã, criticando o governo federal.


Publicado na revista Manchete, em 20.06.1964