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A invasão britânica – por Arthur Dapieve

João Ricardo, de 14 anos, chegou com a família ao Brasil em 28 de março de 1964. Em Portugal, se apaixonara pelos Beatles e esperava reencontrá-los aqui. No entanto, o futuro cabeça dos Secos & Molhados (Ney Matogrosso foi o corpo, a voz) frustrou-se ao descobrir que aportara num universo paralelo onde os Fab Four ainda eram virtualmente desconhecidos. De quebra, seu pai, o poeta e jornalista João Apolinário, que fugira do fascismo de Salazar, reencontrava o fascismo em Castello Branco.

Ana Maria Bahiana, de 13 anos, escutou o primeiro compacto brasileiro dos Beatles no mesmo março, talvez abril. A futura crítica cultural alista a audição de She loves you e I wanna hold your hand, numa festa, entre as “lembranças fragmentadas e episódicas” do ano ao qual dedicou um livro recente, Almanaque 1964 – Fatos, histórias e curiosidades de um ano que mudou tudo (e nem sempre para melhor). Ana Maria se recorda também que não deu praia em Ipanema na virada de março para abril.

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Naquele momento, o Brasil não estava isolado em termos de Beatles. A banda de Liverpool, então já formada por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, continuava a ser um fenômeno basicamente europeu. Desde o começo de 1964, eles estavam empenhados na conquista das Américas, ou, ao menos, dos Estados Unidos da América. Em 3 de janeiro, os Beatles apareceram pela primeira vez na TV americana, com o Jack Paar Show retransmitindo uma participação deles, com She loves you, no documentário The Mersey Sound, produzido pela BBC.

No dia 7 de fevereiro, o voo PA 101 da Pan-Am pousou no aeroporto John Fitzgerald Kennedy, em Nova York, com os Beatles a bordo. A partir dali, a crônica da primeira passagem da banda pelo país se assemelha ao relato de um avanço militar. Aliás, o termo que passa a ser usado para nomear aquele momento é British Invasion. Teve aparição no Ed Sullivan Show no dia 9, show de estreia no Washington Coliseum no dia 11, show no Carnegie Hall na noite seguinte, segunda aparição no Ed Sullivan Show (estima-se que a primeira tenha atraído 73 milhões de espectadores e diz-se que os índices de criminalidade caíram nos EUA), encontro com o boxeador Cassius Clay.

Diferentemente do que se pode pensar, não é nem nunca foi natural que artistas ingleses façam ou fizessem sucesso nos EUA. Afinal, como declarou o irlandês renegado Oscar Wilde ao retornar a Londres, depois de uma turnê pelo país, “nós realmente temos tudo em comum com a América hoje em dia, exceto, claro, a linguagem”. A conquista dos Beatles, portanto, é um marco. Além disso, dado o poder e o alcance da indústria cultural americana, assinala também a globalização da beatlemania. Seus efeitos seriam sentidos simultaneamente no Brasil, onde sua música mais e mais aventurosa soava como um território independente no meio de um cotidiano no qual os artistas locais tinham, cada vez menos, liberdade para se expressar.

Antes mesmo de o impacto dos Beatles e de suas franjinhas ter sido completamente absorvido em sociedades conservadoras, como a americana e a brasileira, uma segunda leva de “invasores britânicos” já estava se preparando do outro lado do Atlântico. Nas palavras do semanário inglês New Musical Express, era “um quinteto de homens das cavernas”: Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones, Bill Wyman e Charlie Watts, ou seja, os Rolling Stones. O grupo lançou seu primeiro LP, The Rolling Stones, em 2 de maio de 1964. O disco já chegou às lojas da Grã-Bretanha com pedidos de 100 mil cópias, o que o fez destronar do topo das paradas With the Beatles, lançado em novembro do ano anterior, com pedidos antecipados na casa das 500 mil cópias.

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Se musicalmente os Stones eram mais conservadores do que os onívoros Beatles, ao menos naquele momento eles estavam comportamentalmente à sua esquerda. Em 22 de abril de 1964, o jornal Daily Mail publicou que o presidente da federação inglesa de cabeleireiros havia proclamado que a próxima banda de rock a atingir o topo das paradas ganharia um corte grátis. Para ele, os Stones eram os mais desesperadamente necessitados de um. “Um deles parece ter um espanador no topo da cabeça”, disse, referindo-se, com mais probabilidade, a Richards. No final de maio, depois de os Stones terem atingido o topo das paradas (e terem ignorado a gentil oferta do cabeleireiro), 11 alunos foram suspensos numa escola de Coventry por usaram cortes à la Jagger.

No dia 1º de junho, o voo BA 505 da British Airways pousou no aeroporto John Fitzgerald Kennedy, em Nova York, com os Rolling Stones a bordo. Se os EUA já estavam prostrados aos pés dos Beatles, a segunda leva de invasores funcionou como um golpe de misericórdia. “Quando eles entraram no estúdio da RCA (em Los Angeles), a gravação parou porque nunca ninguém tinha visto alguém parecido com aquilo”, declararia o produtor Jack Nitzche. O quinteto de homens das cavernas excursionava para promover seu primeiro LP americano, subtitulado England’s newest hit makers.

Ao menos nesse quesito, o que era bom para a América era bom também para o Brasil. No decorrer da década, o rock inglês influenciaria a Jovem Guarda e a Tropicália de um jeito que Elvis Presley ou Bob Dylan não haviam influenciado. Depois, ainda viriam o Led Zeppelin, o Pink Floyd, o Yes… No caso dos EUA, havia uma ironia no sucesso de Beatles e de Rolling Stones. Suas principais influências eram músicos negros de blues que os próprios americanos desconheciam. Até o nome Rolling Stones tinha vindo de uma música de Muddy Waters, Rollin’ stone. Aliás, no desembarque dos Beatles, um repórter perguntou a McCartney o que eles queriam ver nos EUA. “Muddy Waters e Bo Diddley”, foi a resposta. Ao que o jornalista perguntou: “Muddy Waters? Onde fica isso?” Logo, graças a garotos brancos ingleses apaixonados por blues, não só os EUA como as outras nações saberiam onde fica Muddy Waters: no centro do mundo.

Arthur Dapieve é jornalista e escritor.