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Antielegia do centavo – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 15.05.1964 / Acervo Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 15.05.1964 / Acervo Biblioteca Nacional

1º Caderno, Imagens do tempo
Antielegia do centavo
C.D.A

Não chorarei a morte do centavo, que um deputado propôs e a Comissão de Justiça da Câmara aprovou. Ele teve vida curta e nunca se impôs. Nascido em 1942, e cunhado em moedas de 10, 20 e 50 – espécie de figurativismo abstrato – sua capacidade aquisitiva era tão discreta que, a bem dizer, com ele se compravam apenas aborrecimentos. Levante-se a estatística das pessoas que resmungaram ou brigaram por vis questões de troco e chegar-se-á à conclusão de que o centavo foi elemento desagregador de convivência e só por isso fazia jus ao título de moeda divisionária. Nos coletivos, discussões azedas, seguidas até de pugilato, tiveram como origem o níquel de 50 centavos. Na opinião de senhoras ranhetas, donos de padaria tornaram-se milionários sonegando a moedinha de troco de cada cliente, e no guichê dos Correios havia problemas de selo. Sujeitos compenetrados em excesso da noção de direito reclamavam o troco por uma questão de princípio, e as questões de princípio levam à intransigência e à guerra. Não direi que se perpetraram assassinatos por amor do centavo, mas houve enxaquecas, distúrbios vasculares, o diabo. Efígies conspícuas como as de José Bonifácio e Rui Barbosa passaram pelo vexame de ser jogadas à cara do reclamante, com este comentário: “Fominha!” E para que tudo isso, se o centavo não valia sequer a pena de escrever-lhe o nome, nos cheques que incluíam irritantes quebrados?

O tostão era outra coisa, e deixou saudades. Chegou a merecer apelido carinhoso: tusta. Era termo alto de comparação, na filosofia popular: “Quem nasceu para dez-réis não chega a tostão”. Um poema de Mário de Andrade fala no “tostão de chuva” que um sitiante metido a gaiato pediu ao milagroso padre Cícero para o seu minifúndio. O santo mandou só dois vinténs de chuva para os outros, e para ele fez chover um tostão, água tanta que converteu o sítio em lagoa, matando o cavalo de Antônio Jerônimo. Assim era o tostão: fluvial, poderoso, com ele se comprava um cafezinho, pão, bala, fósforo, jornal, passagem de bonde – não minto. Sua linhagem nobre remontava a moedas de ouro e prata de tempo dos Afonsinhos, se não quisermos entroncá-la no teston francês de Luiz XII, em que se estampava a tête do rei, conforme acaba de soprar-me a prestante enciclopédia.

Se o tostão, que era bom, se foi, por que não iriam também, e rápido, os centavos aluminizados que lhe sucederam e que ninguém ousaria oferecer a um mendigo, com receio de humilhá-lo e humilhar-se? Vai-te, centavo, para comodidade de todos nós e principalmente das máquinas registradoras, que não registram o vácuo. O único defeito que encontro no projeto é não suprimir também o cruzeiro pelos mesmos e respeitáveis motivos de inutilidade e elevado custo de fabricação. Para que dinheiro, a essa altura dos acontecimentos? Sai muito caro e não resolve.

Publicado no jornal Correio da Manhã, 15.05.1964

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , ,