Em maio de 1964, enquanto acontecia a CPI da indústria cinematográfica em Brasília, o filme Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, era recebido no Festival de Cannes e conquistava prêmios como o do Ofício Católico Internacional de Cinema, o Prix International des Cinémas d’Art et d’Essai e o de Meilleur Film pour la Jeunesse.
Como parte da programação da Mostra em 1964, o cinema do IMS-RJ exibirá, em maio: Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos e O leopardo, de Luchino Visconti. A Mostra em 1964 foi iniciada em janeiro e vai até dezembro deste ano, com seleção do coordenador de cinema do IMS, José Carlos Avellar.
Programação de maio da Mostra Em 1964:
Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos (Brasil, 1963. 103’)
Complemento: Como se morre no cinema, de Luelane Loiola Corrêa (Brasil, 2002, 20‘)
Exibição em 35mm: quinta, 1 de maio, 20h | sábado, 3 de maio, 20h
Em primeiro de maio de 1964, o filme de Nelson Pereira dos Santos era recebido no Festival de Cannes “Em 1958 houve uma grande seca e nós subimos o Nordeste, Bahia e Pernambuco, fazendo documentários. Eu e o Hélio Silva, filmando e fotografando”, diz Nelson sobre esse filme inspirado em Graciliano Ramos. “Escrevi uma história sobre o problema da seca, mas não tinha condições pessoais para fazer isso. Era sempre um relato jornalístico. Lembrei-me então de Graciliano: Vidas secas é um depoimento sobre a questão agrária da maior importância; e duradouro, porque coloca o problema da migração e o problema da terra sem dar ênfase à questão da seca: o problema do Nordeste não é o clima, mas a relação de trabalho e o regime de propriedade”.
“Um filme despojado e seco, tal como a natureza que ele evoca”, comenta em Le Figaro, o crítico Louis Chauvet: “a lentidão e a monotonia do filme são intencionais, sugerindo a uniformidade do desespero humano”. No France Soir, Jean Dutourd, protesta contra a morte da cachorra Baleia: “É abominável a cena da morte da cachorra. Tal episódio me abalou mais que os infortúnios da triste família brasileira. Matar um cachorro belo como aquele! Decididamente essa gente merece as desgraças que lhe acontecem. Aliás no começo do filme eles comem o seu papagaio no espeto. Provavelmente por ciúme, pois ele se exprimia melhor do que eles”. Para L’Humanité, “a raiva que de vez em quando se junta à esperança de uma vida melhor, confere a essa obra o aspecto de um uivo debaixo do sol”. Para o Nice Matin, “um filme humano que faz a câmera palpitar como um coração, um relato simples, feito de imagens escolhidas e de detalhes poéticos”.
Em Cannes, Vidas secas é recebido pela crítica francesa de centro e de direita com adjetivos como “humano”, “verdadeiro”, “sincero”, “simples”, “autêntico”, “terno” e “áspero”, e apontado pela crítica de esquerda como “um desmentido às declarações feitas um mês antes, em Paris, pelo Governador Carlos Lacerda de que não há diferença de classes no Brasil”. No momento em que o filme era exibido, informa o enviado especial do Jornal do Brasil, Luís Edgar de Andrade, “o presidente do Festival, Robert Favre Lebret, foi obrigado a telefonar para o Comandante da Esquadra Americana no Mediterrâneo, ancorada no largo de Cannes, para um apelo urgente: era preciso desligar o radar, cuja interferência provocava ruídos estranhos no sistema sonoro da sala de projeção do Palácio do Festival. O correspondente conta ainda que “a cena da morte da cachorra Baleia, que a direção do Festival pretendeu cortar devido a seu extremo impacto emocional, foi conservada. Um dos críticos presentes à entrevista afirmou que a morte de Baleia é uma verdadeira obra-prima”.
“Vidas secas, continua a repercutir favoravelmente em toda a imprensa europeia”, noticia o Jornal do Brasil. “O vespertino Paris Presse diz que ele faz jus a um dos prêmios da competição, enquanto Le Monde elogia a coragem do seu realizador. Destaque especial foi conferido pelos jornais à “partitura fascinante do filme, uma espécie de música abstrata, composta de vibrações imperceptíveis e e acordes suspensos, sem que se pudesse definir a intervenção de qualquer instrumento de corda ou sopro”. No France Soir, uma nota discordante. Com o título Pobre cachorro, pobre papagaio, Jean Dutourd afirma:
“É preciso afirmar, mesmo correndo o risco de parecer imoral: o espetáculo de extrema bestialidade e de extrema perversidade é o máximo. Vidas secas, filme brasileiro do Sr. Pereira dos Santos, nos mostra uma família de camponeses idiotas e miseráveis que vivem em fuga. O personagem mais simpático da história é uma bela cachorra, muito gentil, muito prestativa, infinitamente mais inteligente que seus donos. Ela é fina, elegante, corre para caçar preás. Mas no meio do caminho, o camponês lhe dispara um tiro de fuzil. Essa cena é abominável. Ela me abalou bem mais que os infortúnios da triste família brasileira. Matar uma cachorra tão bela! Decididamente essa gente merece todas as desgraças sofridas. Além do mais, no começo do filme, eles comem seu papagaio no espeto. Provavelmente por ciúmes: porque ele se exprimia melhor do que eles”.
Indignada com a morte da cachorra Baleia – que imaginava ter sido efetivamente morta durante a filmagem – a condessa italiana Mia Acquarone articulava com a Sociedade Protetora dos Animais um movimento de protesto contra o filme.
O Jornal do Brasil informa: “a foto da cadela Baleia, saiu ontem na primeira página de todos os jornais da Côte d‘Azur com legendas que diziam que ela era a vedete de domingo no Festival. Baleia chegou ao aeroporto de Nice às 10 horas de domingo, pelo avião da Air France, sendo recebida por um batalhão de fotógrafos. Deu sinal de reconhecer imediatamente seu dono, o produtor Luís Carlos Barreto, em cuja direção correu. Do aeroporto Baleia seguiu diretamente para o Palácio do Festival e durante meia hora na Croisette, a avenida beira-mar de Cannes, deu uma sessão de pose para os fotógrafos. Está hospedada no Hotel Waldorf Vitória”.
O brasileiro Vidas secas conquistou o prêmio do Ofício Católico Internacional de Cinema, “pela sua linguagem cinematográfica original e sugestiva, tendendo, de maneira eficaz, a descobrir de novo, além de uma crise passageira, os sentimentos e os valores poéticos da vida cotidiana e o valor de enfrentá-las”. O filme de Nelson recebeu ainda dois prêmio paralelos: o Prix International des Cinémas d’Art et d’Essai e o de Meilleur Film pour la Jeunesse.
“Ricardo Ramos aplaude Cannes”, noticia o Jornal do Brasil. Entrevistado por Lago Burnett “em São Paulo, o contista, filho do romancista Graciliano Ramos, achou ótima a concessão do Prêmio Católico ao filme Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos por entender que ‘assim fica ressaltada a mensagem huma- na que, independente de qualquer outra, a obra transmite’. Acha Ricardo Ramos que a fotografia, ‘com os implacáveis contrastes preto-branco, caracterizou muito bem a paisagem agreste nordestina’ e foi o ponto alto do filme.”
O leopardo (Il gattopardo), de Luchino Visconti (Itália, França,1963. 187‘)Exibição em cópia digital: sexta, 2 de maio, 18h30 | domingo, 4 de maio, 18h30
O pano de fundo é a história da Sicília no século 19, dominada pelo ramo espanhol dos Bourbons. O Príncipe de Salina Don Fabrizio começa a perceber que a atuação de Garibaldi iria alterar a estrutura de poder então dominante. Com o desembarque de cerca de mil voluntários garibaldinos na Sicília, a ameaça iminente, Tancredi, sobrinho do príncipe, sussurra para ele a fórmula mágica: é preciso que as coisas mudem para que tudo continue a ser o mesmo. Assim, ele participa da luta pela unificação da Itália, garante a continuidade da influência da família no poder e, ao mesmo tempo, a sua própria sobrevivência casando-se com a filha do latifundiário local. Era a velha aristocracia aliando-se à força ascendente da nova época: a burguesia. “A máxima reacionária do príncipe Tancredi – é preciso que as coisas mudem para que tudo continue a ser o mesmo – corre como um fio vermelho por toda a extensão de meu filme” disse Visconti no lançamento. “Ao preparar o roteiro e depois ao realizar esse filme pensei também no tempo presente e não só no passado. Estão vivas ainda as palavras do príncipe, pois apesar de algumas modernizações, tudo permanece como antes”.
“Que pode dizer um diretor sobre o filme que acabou de fazer? Que dizer para não parecer presunçoso?” – perguntou-se Visconti em certa ocasião. “Quando um filme fica pronto, o diretor é quem mais tem perguntas a fazer sobre ele. Perguntas, dúvidas, nenhuma resposta. Jean Renoir, que quando jovem foi um entusiasmado ceramista, costumava dizer que a cerâmica e o cinema têm um ponto em comum: o autor sabe o que quer fazer, sempre. Mas uma vez que leva a obra ao forno, já não sabe se o que vai sair dali é o que ele queria fazer. Em resumo, os filmes são claros no início e obscuros no final”.
No Correio da Manhã, Antônio Moniz Viana condena “com veemência a diminuição criminosa de O leopardo (Il Gattopardo) de Luchino Visconti. A versão original, com 185 minutos, sofreu cortes somando 25 minutos na versão lançada nos Estados Unidos, mas nem assim se deu por satisfeita a empresa distribuidora (Fox), castrando em mais 20 minutos as cópias destinadas ao mercado brasileiro. E, em outro grave atentado, repassou em DeLuxe o colorido original, assim desfigurando a fora em um de seus aspectos mais elogiados pela crítica europeia. Ou ainda: justamente no ponto em que o Visconti-pintor, como Senso já revelara, exercitava-se com incontida volúpia, exigindo de um grande fotógrafo como Giuseppe Rotunno um verdadeiro tour-de-force. Um terceiro fato, que, por si só, não teria tanta gravidade, completa o massacre: a dublagem em inglês dos diálogos, de que resulta uma certa rarefação da atmosfera geral dessa reconstrução do Risorgimento italiano visto, em ida e volta, de Palermo a Donnafugata”.