Você está aqui:   Home  /  Blog  /  Dos bens imponderáveis – por Carlos Drummond de Andrade

Dos bens imponderáveis – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 24.04.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 24.04.1964 / Biblioteca Nacional

Dos bens imponderáveis
C.D.A

Eis que termina o prazo para declaração de ren­dimentos e bens, e ainda uma vez, de esferográfica no ar, o cronista se interroga, antes de preencher o formulário hieroglífico adquirido na papelaria: que são bens? que são rendimentos? São dinheiros, prédios, terrenos, veículos, joias, metais preciosos, coi­sas, excluídos a cama, a cadeira, a mesa e o terno de casimira, como lá diz o formulário? Não haverá outros bens e rendimentos impalpáveis, invisíveis mesmo, às vezes mais valiosos ainda do que aqueles — e serão tributáveis, serão declaráveis?

Há tempos, cuidei por es­crito público deste problema, e o então delegado do Imposto de Renda na Guanabara teve a gentileza de felicitar-me pela semente da boa ideia que eu teria lançado: a de taxar tam­bém a brisa suave da mon­tanha, os pores do sol no Leblon, o sorriso com que nos gratifica na rua uma excelente desconhecida, a amizade de um gato, sabores, estados de cisma, etc. Mas rendimentos e bens de tal ordem são difíceis de caracterizar, pois varia ao infinito a capacidade subjetiva de captá-los e fruí-los, podendo existir até quem jamais haja reparado neles, e, mesmo, que abomine esse ou aquele tipo sutil de riqueza. Como definir, avaliar, taxar as magníficas coisas que não são conversíveis em dólar, escritura, conta bancária, etc.?

Na declaração-tipo de bens, que o Fisco me con­vida a preencher, a difi­culdade se acentua com a exigência de minudenciar os bens possuídos no ano-base, em comparação com os do ano anterior. Pede-me que indique não somen­te o que eu ganhei ou con­servei como o que eu perdi no ano-base. Ah, o que eu perdi. E como o perdi? O que cada um de nós perde sem saber que o está per­dendo e só muito mais tar­de percebe, se é que algum dia vem a percebê-lo! O mau poeta já disse: “Estou perdido antes de haver nascido e me (sic) nasci votado à perda de frutos que não tenho nem colhia”.

Quem bem ficou menor nesse tal ano-base de 63: a cor menos cor? o silêncio menos silêncio, nos raros instantes em que baixou como bênção? a música se fez menos pura, ou é o ou­vinte que já não a distin­gue como antes? O bem de andar a esmo já não distri­bui seu peculiar dividendo, ou são pernas menos valentes que amesquinham tal rendimento? Ficamos mais pobres, talvez, mas a fortuna é a mesma.

E o que ganhamos, con­tribuintes, com referência ao ano atrasado, nessa ordem de valores? Que achados na natureza das coi­sas nos causaram especial satisfação, incorporando-se ao nosso patrimônio íntimo e inalienável? São aquisições imponderáveis, como os próprios objetos adqui­ridos. Nem sempre nos damos conta do acrescentamento, operação sem corretagem. É preciso prestar muita atenção, mas a aten­ção esmaece o prazer, e o bem se deteriora, submetido ao computador eletrônico. Manter contabilidade de estados de espírito? Pois sim.

Tudo isso parecerá diva­gação marota, fogos vene­zianos para driblar o Imposto de Renda e omitir os exatos lançamentos da Cé­dula C, terror dos assala­riados. Não, não. É simples colher de chá aos assalariados, que pagando o tributo a César, se sentirão felizes ao verificar que os bens supremos de cada um, escondidos no ar ou na al­ma, não haverá poder ne­nhum que os taxe — por um impedimento de lingua­gem.

Publicado no jornal Correio da Manhã em 24.04.1964 / Acervo Biblioteca Nacional.

  2014  /  Blog  /  Última atualização dezembro 17, 2014 por Mariana Newlands  /  Tags:, , , , , , , ,