Dos bens imponderáveis
C.D.A
Eis que termina o prazo para declaração de rendimentos e bens, e ainda uma vez, de esferográfica no ar, o cronista se interroga, antes de preencher o formulário hieroglífico adquirido na papelaria: que são bens? que são rendimentos? São dinheiros, prédios, terrenos, veículos, joias, metais preciosos, coisas, excluídos a cama, a cadeira, a mesa e o terno de casimira, como lá diz o formulário? Não haverá outros bens e rendimentos impalpáveis, invisíveis mesmo, às vezes mais valiosos ainda do que aqueles — e serão tributáveis, serão declaráveis?
Há tempos, cuidei por escrito público deste problema, e o então delegado do Imposto de Renda na Guanabara teve a gentileza de felicitar-me pela semente da boa ideia que eu teria lançado: a de taxar também a brisa suave da montanha, os pores do sol no Leblon, o sorriso com que nos gratifica na rua uma excelente desconhecida, a amizade de um gato, sabores, estados de cisma, etc. Mas rendimentos e bens de tal ordem são difíceis de caracterizar, pois varia ao infinito a capacidade subjetiva de captá-los e fruí-los, podendo existir até quem jamais haja reparado neles, e, mesmo, que abomine esse ou aquele tipo sutil de riqueza. Como definir, avaliar, taxar as magníficas coisas que não são conversíveis em dólar, escritura, conta bancária, etc.?
Na declaração-tipo de bens, que o Fisco me convida a preencher, a dificuldade se acentua com a exigência de minudenciar os bens possuídos no ano-base, em comparação com os do ano anterior. Pede-me que indique não somente o que eu ganhei ou conservei como o que eu perdi no ano-base. Ah, o que eu perdi. E como o perdi? O que cada um de nós perde sem saber que o está perdendo e só muito mais tarde percebe, se é que algum dia vem a percebê-lo! O mau poeta já disse: “Estou perdido antes de haver nascido e me (sic) nasci votado à perda de frutos que não tenho nem colhia”.
Quem bem ficou menor nesse tal ano-base de 63: a cor menos cor? o silêncio menos silêncio, nos raros instantes em que baixou como bênção? a música se fez menos pura, ou é o ouvinte que já não a distingue como antes? O bem de andar a esmo já não distribui seu peculiar dividendo, ou são pernas menos valentes que amesquinham tal rendimento? Ficamos mais pobres, talvez, mas a fortuna é a mesma.
E o que ganhamos, contribuintes, com referência ao ano atrasado, nessa ordem de valores? Que achados na natureza das coisas nos causaram especial satisfação, incorporando-se ao nosso patrimônio íntimo e inalienável? São aquisições imponderáveis, como os próprios objetos adquiridos. Nem sempre nos damos conta do acrescentamento, operação sem corretagem. É preciso prestar muita atenção, mas a atenção esmaece o prazer, e o bem se deteriora, submetido ao computador eletrônico. Manter contabilidade de estados de espírito? Pois sim.
Tudo isso parecerá divagação marota, fogos venezianos para driblar o Imposto de Renda e omitir os exatos lançamentos da Cédula C, terror dos assalariados. Não, não. É simples colher de chá aos assalariados, que pagando o tributo a César, se sentirão felizes ao verificar que os bens supremos de cada um, escondidos no ar ou na alma, não haverá poder nenhum que os taxe — por um impedimento de linguagem.
Publicado no jornal Correio da Manhã em 24.04.1964 / Acervo Biblioteca Nacional.