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Medo de avião – por Paulo Mendes Campos

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

Medo de avião
Paulo Mendes Campos

Uma vez, depois de ter narrado para amigos um aci­dente quase fatal, arrematei dizendo que estava vi­vendo de graça há mais de quinze anos. Meu filho, pre­sente, perguntou por quê. Respondi que eu já podia ter entrado pelo cano… eu e ele. “Eu também estava no avião?” – perguntou o garoto. “Não, eu é que ainda não era casado”. O menino fez uma cara chateada e metafísica: “Não, eu não entrava não”. Os amigos se riram da vontade que ele tinha de viver. O garoto, dramático, falou com uma certeza furiosa: “Eu dava um jeito de nascer de outro pai”.

Foi em 1946 ou 1947. Tempo fechado no fim de uma tarde, sobrevoávamos o Rio, em um avião norte-americano de transporte de tropas. Voltávamos da cidade mineira de Bocaiúva, onde havíamos presenciado um eclipse total do sol. O avião, informado pela torre, já se preparava para furar as nuvens terrosas e aterrissar. Dentro do apa­relho, além de professores, éramos uns poucos jornalistas: José Guilherme Mendes, Otto Lara Resende, Nertan Ma­cedo, eu.

Escrevia tranquilamente a reportagem do eclipse, quando, de repente, não mais que de repente, o avião caiu e eu subi. Subi com todos os outros companheiros (menos o José Guilherme, que sempre viaja amarrado) e nos chocamos duramente contra o teto do aparelho. Mas o avião não parava de cair. A queda é um átimo em câmara lenta. Enquanto caía, o fio de consciência que me restava só fazia um pedido: esborrachar logo contra o chão, encurtar a agonia. Não sei por que me passou tam­bém pela cabeça a ideia insensata de que iríamos explodir ali por perto do Obelisco. Mas os motores roncaram outra vez, o avião descreveu uma parábola para baixo e galgou para mais alto. Aguardando uma segunda queda defi­nitiva, demos conta de que havia feridos a bordo. Narizes que sangravam, braços torcidos, ombros traumatizados. A mim, por sorte, doía-me apenas a parte do corpo providencialmente acolchoada. Um professor de astronomia, com a clavícula partida, e Otto Lara Resende, com a ca­beça trincada, eram as duas vítimas de maior seriedade. Otto, mais pálido que a palidez, foi recolhido do chão e colocado em uma maca, de onde ficou nos olhando com uns olhos relampejando de espanto. Por nossos olhos devia passar também o mesmo relâmpago. Porque, na verdade, não tínhamos a menor ideia do que acontecera, e esperá­vamos, dessa vez com um medo refletido, o mergulho no abismo. O comandante, não o piloto, um americano meio gordo e bonachão que atendia pelo nome de major Burlando, enquanto providenciava os primeiros curativos para os feridos, explicou-nos sumariamente que perdêramos a rota e nos dirigíamos a Belo Horizonte. Só meia hora depois nos contou que o nosso avião andara tirando fino em um avião comercial, e que, para evitar a colisão, nosso piloto desatacara bruscamente o motor, embora pouco esperançoso de reequilibrar de novo a aeronave.

Chegamos a Belo Horizonte já bastante tarde. Sur­preendeu-me que a primeira iniciativa da tripulação fosse percorrer as asas do avião para investigá-las. Disseram-nos que a coisa tinha sido a uma distância mínima. Só mais tarde soube que de fato batemos no outro avião, e que este nos cortara o fio do rádio e amassara um pouco uma asa do nosso. O major Burlando nos disse logo, rindo-se, que, se não existissem condições de pouso em Belo Horizonte, teríamos de ter saltado de paraquedas, pois a gasolina chegara ao fim.

No dia seguinte, pela manhã, voltávamos ao Rio. Com a exceção do Otto, que ficou de cama, com a cabeça quebrada.

A aventura cortou para sempre a carreira de um entusiasta da aviação, o Otto. Dentro de um avião, este se portava, até aquela data, com uma inconveniência admirável, divertindo-se em amedrontar amigos e conhe­cidos. Pois terminou ali a carreira do gozador, que amava até as tempestades no ar e se ria a valer com a paúra dos outros.

Hoje, os amigos que conhecem o pavor aéreo do Otto não são capazes de imaginar o antigo herói, uma espécie de Saint-Exupéry-Macunaíma dos aviões de car­reira. Mas cá estou eu para dar testemunho.

Contarei apenas um caso. Todos conhecem o poema “Morte no Avião”, de Carlos Drummond de Andrade: um homem acorda, toma banho, veste-se, sai para a rua, vai a um banco, passa em escritórios, almoça um peixe em ouro e creme, compra um jornal, tem dor de cabeça, toma um comprimido, vai em casa, toma um táxi, chega ao aeroporto, entra no avião, decola, voa sobre os ne­gócios e os amores da região, rola de repente pulverizado e se transforma em notícia.

Esse poema tinha acabado de sair no suplemento do Correio da Manhã. Otto recortou a poesia e levou o re­corte ao aeroporto, onde embarcávamos para Belo Ho­rizonte. A nosso lado, vieram sentar-se o Sr. Juscelino Kubitschek, então deputado federal, e o Sr. José Maria Alkmim. O primeiro a quem Otto passou o intimidante poema foi o Sr. Juscelino Kubitschek, que achou os ver­sos muitos bonitos e os estendeu logo ao Sr. Alkmim, cochichando para nós: “O Alkmim morre de medo.” De fato, logo à leitura das primeiras linhas, o deputado, que por sinal é de Bocaiúva, franziu a testa e não quis mais nada, devolvendo o recorte como quem repele uma con­denação à morte: “Isso não é brincadeira que se faça.” O Sr. Kubitschek se ria às gargalhadas. O Otto Lara Resende também. Pois isso se deu antes do eclipse de Bocaiúva.

Publicado na revista Manchete em 11.04.1964