Uma loja
C.D.A.
Peço à musa da crônica uma nênia pela morte de O Camiseiro. Uma casa tão popular, tão dentro da vida carioca durante quase meio século, não pode acabar assim, sem o acompanhamento sentimental de uma coroa de palavras. É verdade que não devo ter comprado muita coisa ao Camiseiro, loja barulhenta e meio confusa; camisas, certamente não. E agora me vem este remorso: terei contribuído para a sua falência, deixando de adquirir lá as camisas brancas, listradas, de manga curta ou comprida, de bolso e sem bolso, de punhos com e sem botões (as antigas, sem colarinho), vestidas durante esse estirão de tempo? Serei um dos responsáveis pela queda do Camiseiro?
Pode ser que uma tarde, passando pela Rua da Assembleia, eu deixasse de reparar na cara sombria de um dos quinze sócios da casa postado à porta; se a observasse, leria nela o vencimento de uma duplicata e a impossibilidade de quitá-la. Então, o justo, o caroável, o guanabarino seria associar-me à preocupação daquele comerciante, e dizer-lhe que confiasse em Deus; bater-lhe-ia no ombro; oferecer-lhe-ia meus magros préstimos: tenho um amigo que tem um amigo que tem um amigo que é gerente de um banco mineiro excepcionalmente dinâmico; quem sabe se esse banqueiro não quebraria o galho da firma?
Por outro lado, se eu prestasse o serviço, é bem possível que o banco pusesse o olho na velha sede do Camiseiro, determinado a instalar ali mais uma de suas agências, e meus bons ofícios teriam sido fatais. Nunca se sabe o resultado de um impulso generoso, e em determinadas situações, a regra ouro é ficar quieto para não agravar os acontecimentos.
De qualquer modo, e por mais alheio que me reconheça à sorte do Camiseiro, sinto-me solidário com ele nesta hora de dissolução. É a relação invisível mas real entre um morador e sua cidade. Tudo que acontece nesta bate no peito daquele e retumba com maior ou menor intensidade. As lojas tradicionais são um pouco propriedade de seus clientes e até dos indivíduos que nunca puseram nelas os pés mas sentiram sua influência na vida urbana. As lojas apenas? Tudo. Fui incendiado com o Parc Royal e com o Cinema Alhambra; tive pesadelos de madrugada com o prédio do Elixir de Nogueira; demoli-me com a Praça 11 e reverdeci nos jardins de Botafogo; estou sempre em construção, demolição, reconstrução; caem-me do tórax os azulejos das velhas fachadas da Rua do Lavradio, desapareço rangendo com os bondes da Zona Sul, torno-me sujo e vulgar com as lanchonetes, circulo como térmite nos subterrâneos de O Dragão, sou as casas e os becos e os parques e o cais e a pérgula do Copa e o boteco próximo ao Hospital dos Servidores do Estado onde se espera a hora de visitar o doente pobre. Direis que me exibo em demasia com esse unanimismo carioca, explorado como efeito estilístico. É possível. Mas deixai-me confessar que me sinto um tanto falido com o Camiseiro. Também tive (e quem nunca as teve?) minhas loucuras de maio, aliás também de abril, junho, setembro, o ano todo. Mas foi o Camiseiro quem me ensinou a chamá-las assim, numa fórmula genial. É um serviço que lhe devo e não pagarei. Inscrevo-me no rol dos devedores da casa, na rubrica de títulos incobráveis. Adeus, estrutura velha. É hora de inventar um nome novo para novas loucuras.
Publicado no jornal Correio da Manhã em 25.3.64 / Acervo Biblioteca Nacional.