Você está aqui:   Home  /  Blog  /  Uma loja – por Carlos Drummond de Andrade

Uma loja – por Carlos Drummond de Andrade

Correio da Manhã, 25.03.1964 / Biblioteca Nacional

Correio da Manhã, 25.03.1964 / Biblioteca Nacional

 

Uma loja

C.D.A.

 

Peço à musa da crônica uma nênia pela morte de O Camiseiro. Uma casa tão popular, tão dentro da vida carioca durante quase meio século, não pode acabar assim, sem o acompanhamento sentimental de uma coroa de palavras. É verdade que não devo ter comprado muita coisa ao Camiseiro, loja barulhenta e meio confusa; camisas, certamente não. E agora me vem este remorso: terei contribuído para a sua falência, dei­xando de adquirir lá as ca­misas brancas, listradas, de manga curta ou comprida, de bolso e sem bolso, de punhos com e sem botões (as antigas, sem colarinho), vestidas durante esse esti­rão de tempo? Serei um dos responsáveis pela que­da do Camiseiro?

Pode ser que uma tarde, passando pela Rua da Assembleia, eu deixasse de reparar na cara sombria de um dos quinze sócios da casa postado à porta; se a observasse, leria nela o vencimento de uma duplicata e a impossibilidade de quitá-la. Então, o justo, o caroável, o guanabarino seria associar-me à preocupa­ção daquele comerciante, e dizer-lhe que confiasse em Deus; bater-lhe-ia no om­bro; oferecer-lhe-ia meus magros préstimos: tenho um amigo que tem um amigo que tem um amigo que é gerente de um banco mineiro excepcionalmente dinâmico; quem sabe se esse banqueiro não quebraria o galho da firma?

Por outro lado, se eu prestasse o serviço, é bem possível que o banco pusesse o olho na velha sede do Camiseiro, determinado a instalar ali mais uma de suas agências, e meus bons ofícios teriam sido fatais. Nunca se sabe o resultado de um impulso generoso, e em determinadas situações, a regra ouro é ficar quieto para não agravar os acontecimentos.

De qualquer modo, e por mais alheio que me reconheça à sorte do Camisei­ro, sinto-me solidário com ele nesta hora de dissolução. É a relação invisível mas real entre um morador e sua cidade. Tudo que acontece nesta bate no pei­to daquele e retumba com maior ou menor intensidade. As lojas tradicionais são um pouco propriedade de seus clientes e até dos indivíduos que nunca puseram nelas os pés mas sentiram sua influência na vida urbana. As lojas apenas? Tudo. Fui incendiado com o Parc Royal e com o Cinema Alhambra; tive pesadelos de madrugada com o prédio do Elixir de Nogueira; demoli-me com a Praça 11 e reverdeci nos jardins de Botafogo; estou sempre em construção, demolição, reconstrução; caem-me do tórax os azulejos das velhas fachadas da Rua do Lavradio, desapareço rangendo com os bondes da Zona Sul, torno-me sujo e vulgar com as lanchonetes, circulo como térmite nos subterrâneos de O Dragão, sou as casas e os becos e os parques e o cais e a pérgula do Copa e o boteco próximo ao Hospital dos Servidores do Estado onde se espera a hora de visitar o doente pobre. Direis que me exibo em demasia com esse unanimismo carioca, explorado como efeito estilístico. É possível. Mas deixai-me confessar que me sinto um tanto falido com o Camiseiro. Também tive (e quem nunca as teve?) minhas loucuras de maio, aliás também de abril, junho, setembro, o ano todo. Mas foi o Camiseiro quem me ensinou a chamá-las assim, numa fórmula genial. É um serviço que lhe devo e não pagarei. Inscrevo-me no rol dos devedores da casa, na rubrica de títulos incobráveis. Adeus, estrutura velha. É hora de inventar um nome novo para novas loucuras.

 

Publicado no jornal Correio da Manhã em 25.3.64 / Acervo Biblioteca Nacional.